SANTARENO EM PREMIÈRE
Os nervos encontravam-se ao rubro naquela noite de 1969 em pleno Parque Mayer junto à Avenida da Liberdade no centro de Lisboa.
Estava-se em plena primavera marcelista e acreditava-se que talvez a Censura e a máquina inexorável do Estado Novo tivessem afrouxado a vigilância.
Representavam-se ou ensaiavam-se revistas nos outros teatros do Parque, os restaurantes e cafés abriram como de costume mas duas horas antes do espectáculo a concessionária e directora artística do Teatro Nacional, de estola e luvas até aos cotovelos atravessava a entrada dentro de um automóvel negro conduzido por um motorista perfilado e tendo a seu lado sua filha, a esbelta e altiva protagonista da peça que ia estrear.
- Olha, olha lá vai a Dona Amélia…e a filha.É hoje a estreia da peça do Santareno.
Amélia Rey Colaço e Mariana Rey Monteiro para o Teatro Capitólio depois do Dona Maria II e o Avenida terem ardido de cima abaixo numa estranha história de coincidências e mistérios.
- Ou melhor dizendo a “Rey Fogaço” e a “Rey Bombeiro”…que aquelas são fogo a atear incêndios em todos os teatros por onde andam – cuspiu uma mulherzinha pouco distinta.
Representava-se pela primeira vez no teatro profissional o drama de Bernardo Santareno “O pecado de João Agonia”sobre maldição, diferença, tumulto e morte à volta de um homem jovem cujo pecado era a sua orientação sexual diferente.
A sala estava esgotada, à cunha, com a elite intelectual e artística e o público fiel do Nacional à espera nervoso e impaciente para subir as escadas do velha sala.
Mas o que se esperava ir acontecer era presenciar um marco na história da Cultura Portuguesa onde pela primeira vez e pela mão da primeira figura do Teatro Português se levava á cena de forma séria e digna o tema maldito, proibido e tabu da homossexualidade.
O encenador e também brilhante actor, Rogério Paulo era um homem de esquerda e tinha escrito numa nota do programa que João Agonia podia ter sido um judeu em Berlim na Alemanha de 1937 ou um negro no auge do racismo nos Estados Unidos da América.As opiniões políticas dividiam-se em discussões inflamadas.
O autor, o doutor António Martinho, médico psiquiatra que utilizava o pseudónimo de Bernardo Santareno era o dramaturgo mais pujante e reivindicativo feroz do direito á diferença.O mais enérgico lutador pela causa da liberdade e dignidade do homem face a todas as formas de opressão e discriminação política, racial, económica ou sexual no século XX em terras lusas.Tinha acompanhado como médico frotas bacalhoeiras nos mares do fim do mundo no Norte da Europa.
Ele próprio discreto e diferente, um homem que experimentara como Wilde,Guide, Lorca,Shaw e Williams o amor de que não se ousa dizer o nome.
Ele escrevera uma dúzia de grandes peças que a Censura ou proibira ou deixava passar com tantos cortes que não se conseguia perceber nada da trama.
O elenco de doze actores fora escolhido a dedo e incluía alguns dos melhores profissionais da cena portuguesa: João Perry no papel titular, Glicínia Quartim, Óscar Caetano, Josefina Silva, Henriqueta Maya, Carlos Santos, Varela Silva, Paiva Raposo entre outros, além de Mariana Rey Monteiro e Rogério Paulo como o casal desavindo, pais da figura central.
As pancadas ressoaram e o espectáculo teve início.
O público em silêncio, concentrado ao máximo bebia o diálogo violento e sofrido,o conflito num cenário espantosamente eficaz da casa na serra…Rey Monteiro perfeita na Mãe, mulher do campo ansiosa por rever o filho de regresso a casa depois de anos de ausência, o encontro da família, João dos olhos verdes, a maldição da velha avó escondida na lareira…o segredo da temporada em que vivera com o padrinho…a destemperada e fogosa Maria Giesta…o rapaz objecto do desejo…as visitas…o delator…o escândalo…o conselho de família…a decisão extrema…a despedida quando o pai beija de morte o filho na boca…os tiros…o horror e Mariana sublime a cambalear até ao centro baixo, depois de perceber que a própria família tinha assassinado a cria, a suplicar ao público “Acudam…acudam!”.
Fizeram-se uns segundos, intermináveis de silêncio, um silêncio tenso e atónito, com os corações do público a bater á desfilada, descompassadamente, em lágrimas e em extâse com emoções descontroladas e depois o teatro veio abaixo com um aplauso imenso,gigante, prolongado e ensurdecedor com “Bravos” gritados em histeria e os actores a tremerem conscientes de que tinham feito parte de um momento ímpar, único e irrepetível.
- Fantástico!
- Colossal!
- Mas o safado do Perry não se entregou verdadeiramente na cena da sedução, não achas?- observou um espectador afectado de lenço ao pescoço.
Já Santareno se esgueirava junto da cadeira onde a Senhora Dona Amélia esboçava um sorriso matreiro de satisfação e regozijo ese ajoelhava a seus pés e lhe beijava as mãos
- Srª Dª Amélia a minha vida valeu a pena para assistir a isto.E graças à Senhora o devo.
- Eu é que lhe dou os Parabéns! E agora vá, estão a chamar por si, querem-no no palco!