SALVE-SE QUEM PUDER

Desde criança aprendi que vivemos num país imune às forças deletérias da natureza. Aqui, nada de vulcões, terremotos, tsunamis, furacões e maremotos. Deus, por ser brasileiro, nos poupou desses rompantes da natureza que deixam um cenário catastrófico em muitos lugares pelo mundo afora.

Mas sabemos agora que o homem, sempre engenhoso, tratou de corrigir essa desigualdade construindo gigantescas represas, centenas delas, com tempo de validade precário. São as chamadas barragens de alteamento a montante, nome pomposo para designar as obras mais baratas e menos seguras, segundo os especialistas. Ou seja, pela Lei de Murphy, se elas podem romper, não esperem nenhum milagre.

Só Minas Gerais tem cinquenta reservatórios dessa natureza, para rejeitos de mineração, e ninguém nunca nos disse que eles são uma bomba-relógio. O país tem uma esplanada de ministérios para todas as conveniências políticas, uma penca de agências reguladoras e órgãos fiscalizadores mas, até há pouco tempo, ninguém falou nada sobre esses depósitos artificiais prontos para despejar, a qualquer momento, vagalhões de lama em centenas de localidades com milhares de habitantes. Nem os quatro cavaleiros do Apocalipse imaginariam uma oferenda desse porte.

Duas barragens já cumpriram seu destino: enriqueceram poucos, mataram muitos e destruíram tudo em volta. As outras não deixam os vizinhos dormir em paz. A qualquer hora pode soar o alarma ou, mesmo, acontecer o dilúvio.

Portanto, graças à ação do homem, já estamos em pé de igualdade com o Japão e seus tsunamis, com os Estados Unidos e seus tornados, com a Indonésia e seus terremotos. Até com a Roma antiga nos igualamos. Mariana e Brumadinho, com centenas de vítimas e destruição generalizada, protagonizaram um déjà-vu de Pompeia e Herculano, sufocadas pelas lavas do vulcão Vesúvio.

O curioso é que os antigos egípcios, que não tinham ministérios nem agências reguladoras para fiscalizá-los, construíram pirâmides que estão de pé há mais de 4000 anos, imunes à ação do tempo e às tempestades do deserto.

Lá, eles ergueram monumentos inabaláveis, com a fé dos deuses. Barragens, prédios, pontes e viadutos de papelão são construções nossas, com prazo de validade. Quando caem, salve-se quem puder. Foi apenas um acidente.

Essa conclusão pode até enganar a Justiça que, com a venda nos olhos, muito provavelmente não vai condenar ninguém. O meu receio mesmo é que Deus, ofendido com a nossa ingratidão, renuncie à cidadania brasileira em benefício de outro país. Aí, meus amigos, é que ficaremos mesmo “ao deus-dará”. Por via das dúvidas, vou renovar o meu passaporte.

(Crônica, primeiro lugar, no concurso Adélia Prado, 2019, promovido pela Academia Feminina Mineira de Letras - AFEMIL)

Pereirinha
Enviado por Pereirinha em 14/11/2019
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