MEMÓRIAS DE UM MENINO QUE “BOTAVA ÁGUA”

Acredito que as novas gerações, bem como aqueles que sempre viveram nos grandes centros nunca viram de perto um “botador d´água” e talvez nunca pararam para pensar como era no tempo em que a água não corria por encanamentos embutidos nas paredes de casa e nem estava à disposição ao simples girar de uma chave ou torneira. Pois bem, como testemunha ocular desta realidade, permita-me compartilhar com você um pouco desta história que marcou a minha infância e início da adolescência. Abastecer a casa com água foi, até onde me lembro, meu primeiro trabalho de verdade. Pelo final da década de 80, tendo completado meus dez anos de idade e já acostumado a acompanhar meu pai naquela tarefa, chegou o dia em que ele ao perceber que finalmente eu podia dar conta do serviço, passou para mim, pelo menos em alguns dias da semana, aquela responsabilidade; que não era pequena, pois praticamente todas as atividades da casa, como lavar, cozinhar, tomar banho e até beber, dependiam do cumprimento eficiente daquela tarefa. Água encanada naquele tempo ainda era um luxo de quem morava na cidade, já na comunidade rural em que cresci, a água chegava às casas em pequenos barris de madeira, que chamávamos de “canecos”, trazida do rio, sobre os lombos de jumentos.

Nossa residência era uma das mais próximas do rio, talvez pouco mais de meio quilômetro, o que para mim era algo bastante vantajoso, não só por facilitar o trabalho de buscar água, como também por aquele lugar ser o mais procurado para os momentos de brincadeiras, fosse para recreações na água ou pescaria, algo que aprendi a apreciar na mais tenra idade, mas isso já é outra história. Voltando à minha missão de “aguadeiro”, esta começava logo ao amanhecer e consistia em primeiramente buscar no quintal de casa o único animal de carga da família, uma pequena mais ágil jumentinha, a qual eu aparelhava com cuidado, trabalho que aprendi cedo, observando meu pai realizar, para finalmente colocar sobre ela nossas quatro surradas ancoretas, algumas já com pequenos vazamentos o que exigia sempre algum reparo improvisado. Cumprido este ritual diário, e aproveitando que ainda não havia tanto peso sobre a pequena jegue, de um salto montava sobre a cangalha e partia apressado para o rio, tentando ser um dos primeiros a chegar à beira da pequena e disputada cacimba, cavada sobre a areia lavada do velho Acaraú. Enchidos os vasilhames, vinha a parte mais difícil do serviço, pelo menos no início, que era colocá-los de volta sobre o lombo do animal, agora cheios d’água, um peso considerável para a minha estrutura física ainda franzina. Não posso esquecer de mencionar a preocupação do meu pai com essa parte, pois sempre repetia: “Depois de encher, não tente colocar sozinho em cima, peça alguém mais forte para lhe ajudar”. Bom, confesso que segui esse conselho poucas vezes, pois um misto de vergonha e orgulho me fazia preferir o esforço a importunar alguém. E assim, dia após dia, durante anos assumi com disposição essa responsabilidade, satisfeito por poder ajudar meu pai que precisava sair para o seu árduo trabalho, ainda pela madrugada.

Mas, porque estou aqui compartilhando essa história, que não tem nenhum glamour ou heroísmo? Bem, por pelo menos duas razões. Primeira, a despeito de todo o mimimi que existe hoje a respeito de trabalho infantil, quero testemunhar por experiência própria que o fato de ter começado a trabalhar ainda criança, ajudando meus pais, não me impediu de estudar, não me trouxe prejuízos em nenhuma área da vida, muito pelo contrário, ajudou e muito na minha formação como cidadão, me capacitando a encarar com confiança os desafios da vida, bem como assumir com naturalidade as responsabilidades que vieram ao longo dos anos. A segunda razão tem a ver com o que falei lá no início, sobre esta geração que para obter um jato de água fria precisa apenas acionar uma torneira, um comando simples que não demanda nenhum esforço, mas ainda assim em sua maioria são ingratos e "reclamões". De fato a modernidade trouxe conforto, facilitou a execução de muitas tarefas, mas a pergunta que fica é: essa modernidade produziu seres humanos melhores, mais felizes e satisfeitos? Eu desconfio que não e agradeço a Deus pela minha infância e pelo aprendizado que as limitações da minha época e realidade me proporcionaram.