O Dia de Finados passou
O Dia de Finados, de 2 de novembro de 2019, passou e não volta mais. Mas, os finados não passaram, tampouco passarão. Quem morre se enclausura numa morada quanto ao tempo, de modo indefinido, ou seja, não volta a viver porque ninguém morre duas vezes. É como se estivesse num quarto escuro, sem portas, sem janelas, sem algum buraco no piso ou no teto. Contudo, tais paredes são transponíveis pelos espíritos, ultrapassam as mais grossas, entram e saem das celas mais hermeticamente fechadas, sem precisarem de habeas corpus; para as almas, tudo é igual, tanto faz construírem alcovas ou corredores... Gozam, quanto ao poder de ir e vir, sendo ou não constitucional, de absoluta liberdade.
Contudo, nada mais podem fazer, o tempo de fazer é em vida, por isso, carpe diem! Tampouco, dentro desse quarto escuro, de imagem metafórica sartreana, nada se corrige, mesmo o menor defeito ou qualquer crime cometido em vida, as autocorreções só acontecem enquanto vivemos. Não quero desestimular quem já morreu, tampouco tirar-lhe a fé, ele se desprendeu, sem dieta, do peso do corpo, e ficou mais leve do que uma pluma, invisível ou visível quando quer aparecer, tornando-se para uns assombração. Mas, soltos, fora do quarto escuro, quanto à ação, especialmente para se corrigirem das coisas do passado, continuam no quarto escuro, sem tal liberdade, que só é possível aos vivos que são, nesse sentido, perdulários do tempo. Os humanos vivos têm esse defeito: não se convencem facilmente de que precisam de correção.
O Dia de Finados é uma comemoração geral, sem muita alegria como se festeja o Dia de Todos os Santos. Amiúde, a cada santo o seu dia; por exemplo, 27 de setembro é o de São Cosme e Damião, quando, principalmente cariocas e baianos, distribuem bombons e pirulitos às crianças. Já os falecidos são normalmente lembrados na data em que morreram, com missas e orações, nos sétimo, trigésimo e centésimo dia do aniversário de morte. Depois do centésimo, a comemoração sofre esquecimentos, a não ser se o lembrado é um algum vulto, na sociedade onde viveu, e tenha assumido atitudes pelo bem comum, enquanto viveu ou até morreu como herói.
Algumas culturas, especialmente orientais, choram muito quando morre alguma criança ou algum jovem que, no limiar da vida, teve sua existência tolhida; interrompeu-se bruscamente o caminho da vida, e, abandonadas, sem serem experimentadas, as coisas do futuro. Como se fosse direito da juventude viver mais ou que a sociedade tivesse necessidade dela por mais tempo. Tal sentimento diminui à proporção que a idade avança em relação aos que já viveram muito, que já estão próximos do fim do caminho. Quanto a isso, a natureza sabiamente demonstra os quilômetros contados dessa estrada, dando sinais de que o caminho está chegando ao fim. A esses, os orientais brindam a longevidade usufruída, rememorando seus feitos e cantando loas às memoráveis existências. Nesse sentido, ao final do filme Sonhos, de Akira Kurosawa, vê-se um festivo cortejo que realiza o féretro de uma japonesa de 102 anos, com essa explicação. Meus respeitos e homenagens aos que já caminharam muito e que já demonstram cansaço ao praticarem o proverbial “a vida é uma luta”, mas ainda bravateiam que estão dispostos a tudo... Enfim, não esqueci o Dia de Finados, que foi véspera do domingo, quando publico minha crônica, mas não deixa de ter sentido uma semana depois, porque os mortos sempre continuam... Sobre tal dia, essas são as minhas letras que saem da minha caneta de pena para que se supere o desprezo que se cultiva pela morte, tendo-a como um fato normal e inevitavelmente último da vida, lembrando-se da concisa admoestação de Catão de Útica (95 – 46 a.C), citado por Cícero nas Controvérsias Tusculanas: Tota philosophorum vita commentatio mortis est ou “Toda a vida dos filósofos é preparação para a morte”.