02/10/2007 22h40 

O Bicho, a Boneca 


A perplexidade de Manoel Bandeira, no poema a seguir,experenciei -a em forma de paródia emocional e perplexidade. 

O Bicho 

(Manoel Bandeira)
 
Vi ontem um bicho 
Na imundície do pátio 
Catando comida entre os detritos. 
Quando achava alguma coisa, 
Não examinava nem cheirava: 
Engolia com voracidade. 
O bicho não era um cão, 
Não era um gato, 
Não era um rato.
 O bicho, meu Deus,
 era um homem. 


Ontem , ouvi, pela TV, uma notícia, dessas de arrepiar, causar perplexidade:uma crinaça que brinca, chama a mãe e essa vê uma boneca jogada às margens do Ribeirão Arrudas, aqui em Belo Horizonte. O trecho,do caminho de água, poluído, sujo e mal cheiroso.A senhora pensa que é uma boneca.Mas vê que "a costela se mexeu".Respirava.Era uma recém nata.Pessoas inferem: deve ter sido colocada nas margens.Não foi.A mulher que pariu, jogou a criancinha que há pouco lutara para sair de suas entranmhas, pela janela.Do sexto andar. Irritada porque o fluxo do próprio sangue a denunciara, quando foi presa.Privação momentânea de sentidos?Depressão pés- parto?Loucura?Debilidade mental?Vingança?Medo?... Há pouco tempo, uma outra mulher colocou a filha num saco de lixo e jogou-a na Lagoa da Pampulha.Para não perder o seu homem, que não a sabia grávida.Um corpo de mulher oferece tantas mudanças, grandes e pequenas...Enfim , espanta-nos tal procedimento.Penso nas muitas pessoas que aguardam um bebezinho para adotar.Que fazem tratamentos difíceis, para procriar.Nos pais de coração e desejo, não biológicos...
 
Há pouco, soube que a criancinha entrou em coma.Saí da sala, debilitada para saber dessas notícias. E a poetisa tem de escrever.Que me perdoe Bandeira, eu que não costumo inferir ou parodiar a poesia alheia, tenho de escrever da minha perplexidade: 

A boneca 

Viu uma boneca nas águas poluídas do Ribeirão Arrudas.. .
Olha mais de perto e a suave curva da costela move-se brandamente.
Engole restos, quase sufocada, mas viva.
 Vermes passeiam pelo corpo de pétala amassada e jogada fora. 
A mãe , que por meses a detivera a nadar no líquido amniótico, 
e acabara de expulsá-la das entranhas, 
expulsa-a e a joga pela janela do sexto andar. 
Fica muito aborrecida com o sangue denunciador, quando é presa.
 Meu Deus, não era um peixe, não era um bichinho, não era uma boneca. 
Era uma meninazinha. 
Que, segundo acabam de noticiar, entrou em coma.
 
Privação momentânea de sentidos?Depressão pós parto? Vingança?Medo?Debilidade física ou mental? Não sei. O sinal é vermelho e denuncia a simbiose biológica do pequeno ser ,parida e expulsa do pseudo paraíso líquido onde aguardava a luz, no milagre da vida... 

Clevane Pessoa de Araújo Lopes Belo Horizonte,MG 

Publicado por clevane pessoa de araújo lopes em 02/10/2007 às 22h40 

Quando escrevi, não sei se no mesmo momento, minha amiga, a escritora Terezinha Pereira, mandou-me um conto seu, falando do mesmo assunto...
02/10/2007 23h09
Terezinha Pereira:"Razão de sangue"

"Inspirado em cena do filme O poder dos sentimentos / criança é encontrada num rio em Contagem  "

 
   
     
 
   
 
 
 
"Clevane,
Neste final de semana estive em S. Paulo. fui visitar minha irmã Jane que está promovendo um evento, uma mostra de filmes do cineasta alemão Alexander Kluge. No sábado, ela fez o lançamento de um livro que ela organizou com textos a respeito da obra dele. Muito legal. Segue o link, para você saber sobre o evento: http://www.witz.com.br/alexanderkluge/
 
Inspirada em uma cena do filme "O poder dos sentimentos" e no acontecimento de Contagem, que uma mulher  joga uma criança pela janela, fiz o conto que segue. Se quiser, publique-o no blog.
 
Nesta semana ainda lhe envio os livros.
 
Beijos,
Terezinha
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Razão do sangue  (Terezinha Pereira)

 

_ A senhora queria matar a criança. Defenestrou-a.

_ Não, senhor juiz, não fiz isso. Só atirei a criança pela janela.

_ Deixou a criança crescer na sua barriga para então jogá-la pela janela.

_ Eu não queria a criança

_ E daí, resolveu matá-la. 

_ Não queria matar.  Mas não queria a criança

_ Como praticou o aborto?

_ Não fiz isso. Tomei chá de buchinha-paulista. A criança saiu.

_ Abortou a criança e jogou-a no ribeirão.

_ Não. Joguei-a pela janela logo que a aparei. A criança caiu no ribeirão.

_ E o pai? Também não queria a filha?

_ Não tinha pai. Nem avó, nem tios. Ninguém viu a barriga nem ninguém sabia da criança.

_ Mas, a criança saiu de sua barriga.

_Saiu. Porém, não a queria. Depois, foi o sangue. O sangue que desceu pelas minhas pernas me revelou. 

................................

_ A ré fulana de tal, indiciada nos autos do processo X, está condenada a tantos anos de prisão. Regime fechado.

Terezinha Pereira escreve esse significativo micro-conto presa da mesma ´perplexidade que experenciei ao escrever o poema acima, que o grande Manoel Bandeira descreveu em "O Bicho".
Terezinha Pereira é membro da Academia de Letras de pará de Minas, escreve na revista Estilo, premiada contista, escreveu "Se Uma Pianista Numa Noite Branca" e Contemplação", sobre os quais já falamos aqui.

Clevane pessoa de A.Lopes

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