A Vida Em Terra Boa
Capítulo 2
A vida Em Terra Boa
Meu pai, Clodoaldo, ficou muito ressentido com a ocorrida morte (que ele classificou prematura) de seu progenitor. Como eu sei? Ouvindo as conversas dele, dos adultos. Aqui, ali, acolá podíamos caçar conceitos, histórias, acontecimentos com a redinha colorida da nossa curiosidade. Falava-se muito: de fulano, de sicrano, de beltrano. Não se dirigindo diretamente a nós, crianças, é claro. Nós não tínhamos a distinção de sermos ouvidos frequentemente. Ora, pois, escutávamos. Quero dizer com isso, que os pais, os tios os avós, raramente falavam diretamente conosco. Num romance, seria como se fôssemos figurantes. Os adultos, os astros, os protagonistas. Ressentíamo-nos? Traumatizávamo-nos? Nem um pouco. Hierarquia. Autoridade. Nunca que estas palavras criam mazelas, sequelas ou bagatelas. Pelo contrário, a noção de respeito é altamente civilizada e, vou dizer tudo, satisfatória. Hoje, parece que isto mudou, amiudou-se. As crianças tornaram-se os astros principais do drama humano. Em Paranavaí, isto ouvi dizer, um aluno mandou o professor calar a boca.
Divaguei. Queria na verdade, contar a história da tristeza de meu pai com a morte do dele. Explico. Ele havia comprado um sítio recentemente para meu avô. São Lourenço. Um sitiozinho numa baixada, que tinha sua biquinha, porcos na engorda, casa ampla, simples, mas confortável; poço limpo, corguinho, milho, café, mandioca; verde, muito verde. Um paraíso, hoje percebo. Porém, algo que marcou meu pai por toda sua vida: logo após esta realização tão imensa para meu pai, a aquisição do sítio, meu vô teve um problema de coração, uma cardiopatia. Pouco tempo depois, ele partia da estação sem trem para o destino de todos.
Era um sábado, dia de grande movimento na farmácia. Eu estava sentado no banco em que os fregueses sentavam para esperar o remédio ser preparado. Jogava com muita dificuldade um bilboquê, ou biblioquê, sei lá. Já tinha levado umas duas bilboquezada ou biblioquezada na testa, rsrsrs, Parei. Parei de jogar e levar pancada do brinquedo. Meu pai conversava com um compadre. Ouvi um relato que, tanto tempo passado, não me esqueço jamais.
“Vida difícil do meu pai, ele contou. Em Getulina, uma vez, cheguei da farmácia, e era dia de Natal. Minha mãe disse que só tinha feijão para comer. Eu estava aplicando injeção em um freguês, ou melhor em uma freguesa de 12 em 12 horas. Era um antibiótico. Dormia de roupa para não faltar, não falhar e não atrasar. Só feijão? Natal? Fui até a venda do seu Adamastor. Bati na janela e ele atendeu. Ovos e farinha. Fiado. Levei para minha mãe, Que banquete: feijão virado (tutu) e ovo estralado. Que ceia!” Meu pai falava de modo calmo, elevado. Que seja, eu apenas, lógico ouvia.
“Compadre. Nossa vida inteira foi sofrida. Lutas, poucos recursos, comida escassa (na época, alimentação era bem mais parca). Agora, que consegui ter a farmácia, comprar um sitiozinho, meu pai ter seu cavalinho, sua carrocinha, a vida vem e o leva.
De todas as vezes em que ouvi meu paia conversar e abordar os vários assuntos que permeavam nossa vida cotidiana e de interior esta foi a vez que mais me marcou. Eu havia percebido um traço cruel da morte até então: ela para lisa para sempre aqueles que amamos. Ali, naquela manhã de sábado, vi outra de suas faces cruéis: ela interrompe os sonhos sem perdoar os que estão sonhando. Não pergunta nada. Desaforada.
Todos os passos que meu pai deu, posteriormente, na longa estrada da vida (nem tão longa assim) tiveram como explicação este seu início torturado pelo extenuante trabalho e marcado pela escassez de recursos. De uma certa forma, meu pai combatia sua própria gênese.