50 Contos, ou Mesmo Crônicas, de Terra Boa, Paraná.

Capitulo 01

A Morte.

Nenhuma criança com três anos pode decodificá-la, entendê-la ou interpretá-la. É um elemento que ultrapassa em muito a infância, muito acima da cozinha, do brinquedo, do balanço, da mamadeira, da papinha, da sopinha, da maçã raspada. O arreganhar dos seus dentes pontiagudos nada poupa.

Eu a conheci, defrontei, equiparei, sei lá o melhor verbo, de forma definitiva aos três anos. Na minha Terra Boa, Paraná. A história se dá em quando eu era um petiz, nada mais que um petiz, um garoto, um guri. O norte novo do Paraná borbulhava progresso, oportunidades, chances mágicas, comércio, dinheiro. Formavam-se os cafezais que traziam o ciclo riquíssimo do ouro verde. Vidas mudavam rapidamente, para melhor, para pior. Jeeps transitavam aflitos, levando e trazendo.

Meu avô vinha do sítio. Clodomiro Cunha Braga. Vida sofrida. Ele era meu avô, pai do meu pai. Seus olhos eram brilhantes de vida, mas tristes, sofridos. Trazia-os muitas vezes, fixos no chão, uma humildade espontânea, não planejada. Homem simples – espírito forte, denodado – trabalhador. Tinha uma estatura baixa. Mãos calejadas. Tez para moreno, mais pelo sol tomado no campo, na capina, na agricultura, no labor. Idoso, pois não, mas vibrante de vida. Meu avô parava o cavalo em frente à farmácia. Descia. Nas mãos, um pacote com ovos.

– Este eu trouxe para o Fê.

Minha mãe cozinhava o arroz branquinho e eu misturava com gema do ovo frito. Ficava um arroz amarelo, saboroso, abençoado. Assim, eu trago meu avô até hoje, na memória. Clodomiro, a máquina de costura, a porta entreaberta, seu chapéu em uma das mãos, a luz varando a janela envidraçada, o pacotinho de ovos (depois, fritos), o arrozinho, a vida.

Aí, chegou a morte. Hoje eu entendo o que vi. No dia, foram apenas elementos desconexos, bailando, indo e vindo. Não perfizeram um total. Não me permitiram o vislumbre esclarecedor. Ainda bem. Vi meu avô deitado em cima de uma mesa. Não havia movimento algum. A posição não era de descanso, ou mesmo natural. Era estranhamente imóvel, imóvel... imóvel. Um lençol branco o escondia. Logo ele. Levaram-me e a meus irmãos para a casa de uma amiga da minha mãe: Regina, irmã da Maria Amélia. Dez horas da manhã, ela nos disse: “Vão até a janela e olhem para a esquina ali embaixo”. Passava um cortejo. Vi pessoas com os chapéus nas mãos e cabeça baixa. Um caixão (que eu não sabia que era caixão) sendo carregado. Tudo muito vago, tudo muito indistinto. Nem mesmo em um sonho, eu diria ou perceberia que ali ia meu avô. O Clodomiro não.

Mas foi assim que ele foi. Um tio meu, Gerson, disse, chorando, depois de voltar do cemitério: “Por que deixaram o pai sozinho lá? Ele ficou sozinho. Ninguém ficou com ele”. Ato contínuo, sentei-me, numa pequena mureta, em um gramado que havia em frente à minha casa. Estava descascando uma mexerica. O sol dardejava. Isto aumentava um inexplicável sentimento de tristeza que me envolvia. O cheiro bom da fruta amenizava o quadro, devo confessar. E fiz uma pergunta, para mim mesmo, que só seria respondida muitos anos depois, muitos. “Por que deixaram o vô sozinho?” (Seja lá onde for que deixaram o vô sozinho).

Foi assim que uma intrometida chamada morte adentrou em minha existência. Eu era uma criança. Ela uma dama fria, traiçoeira, injusta. Levou meu avô. Ele não me traria mais os mimos, a atenção. Porém, ela nunca conseguiu levá-lo do meu coração.