Finados dos vivos
Hoje, 2 de novembro, é Dia de Finados, como bem o sabem os vivos. Para a maioria de nós, brasileiros, é um dia chuvoso, frio e triste, independentemente do clima e de nossa áurea interior metafísica. Por isso, com ou sem a permissão de São Pedro, há tanta vela, tanta saudade, tanto choro espalhados pelos cemitérios canarinhos. Por aqui, ainda, não damos à data o colorido, a vida, as alegrias dos vivos e de seus festejos, que aqui é Brasil. Se fosse o México, o Finados seria outro, mais vivo e menos triste e doloroso que o nosso. Li outro dia um artigo muito simpático sobre o assunto, segundo o qual, no México, o "Día de Los Muertos" é o mesmo dia de los vivos. Não é como no Brasil, onde há distinção entre mortos e vivos.
Nos cemitérios mexicanos, no Dia de Finados, há vida, alegrias, risadas, casamentos, doses de tequila consumidas sem moderação; não há ocorrências de intoxicação por fumaça nem incêndios provocados pelas chamas ardentemente acesas das velas que superlotam, neste dia, os superlotados cemitérios brasileiros. O Finados mexicano, colorido e ambientalista, é de dar inveja. É diferente do Finados brasileiro, onde sequer os mortos têm opção de escolha. Infelizmente morto não tem sindicato que defenda seus interesses, representação no Congresso, tampouco CPF ativo para fazer valer seus renegados direitos junto às instituições democráticas, o que me faz perguntar: será que alguém já pensou, durante alguns segundos do dia e da vida que passa sem avisar, que, assim talvez, nossos mortos não queiram tantas velas, tantas saudades, tanto choro que lhes são endereçados no Dia de Finados? Que, assim talvez, preferissem um baile, ao som de jazz, samba, lambada francesa e doses de rum Motilla à fumaça, choro e velas? Alguém já imaginou possível um Dia de Finados, no Brasil, ser tal qual o mexicano, colorido e ambientalista?
Embora exista quem discorde, eu já. Foi em minha infância. Mesmo que tenha sido por meio de uma experiência por engano, de um menino pueril e rural, desconhecedor da existência do México e dos mortos, vale como memória e, razoavelmente, como argumento de que nossos mortos desde há muito são velados mediante tristeza, choro e lágrimas.
Eu, menino de dez anos, semianalfabeto e rural, tinha acabado de sair da escola, de mau humor e cansado das frequentes notas ruins nas Exatas. Seguia para casa, que ficava na zona rural de Novo Lino. Era tempo de longas caminhadas, que carro, àquela época, era para rico, coisa que nunca fui nem pretendo ser. Penso que meu "eu andarilho" que conservo até hoje vem dessas caminhadas com que o mundo da carestia é safadeza me presenteou. Desde cedo este mundo me impôs muitas ladeiras, sendo que uma das primeiras foi a de Novo Lino, a que me batizou no mundo dos obstáculos. Era uma ladeira enorme que morava no caminho de casa, e essa ladeira enorme era a mesma pela qual passava o cemitério da até hoje pequena cidade. À certa altura da caminhada, justamente na ladeira, cansei e decidi estancar próximo a uma árvore de excelente sombra que dava para a entrada principal do cemitério.
Entretido, pensando em questões algébricas e suas subtrações, não percebi de imediato quando as portas do cemitério se abriram e uma tripulação de concidadãos começou a entrar, entoando cantigas, que mais tarde descobri serem rezas, e levando consigo o que, para mim, à época, parecia ser um baú, mas hoje sei que era um caixão. Quando liberto dos cálculos mentais, vi os portões do cemitério abertos e uma cantiga triste dando o tom do momento, e então imaginei tratar-se de uma festa: uma festa com música triste. Embora não oficialmente convidado, entrei. Fui, logo na entrada, recebido por um cachorro com ares de vigia em luto, que me olhou como que me perguntando o nome e
o parentesco. Ignorei-o e dei alguns passos à frente, e lá estava a tripulação, de semblante nada festivo, com seu pesar, choro e rezas, a velar mais um dos seus. A tarde esvaia-se sobre a pastagem verde que cobria os verdes campos do lar dos mortos, o choro geral aumentava, lágrimas desciam dos olhos da tripulação como chuvas de março — e eu, semianalfabeto e rural, não compreendia o motivo de todo aquele luto. Uma senhora, cheia de soluço e lágrimas, me descobriu e me perguntou o que eu fazia ali, onde estava minha mãe, onde eu morava, acreditando que eu estava perdido.
Não compreendia, e ainda não compreendo: se, como dizem os que acreditam, há vida após a morte, e sendo todo humano mortal: por que há tanta tristeza e desespero ante a morte? Por que tanto medo da passagem, se ela não é só de ida, como dizem? Por que, tal qual o povo mexicano, no Dia de Finados, não celebramos a vida, como em um baile, ao som de jazz, samba, lambada francesa e doses de rum Motilla e longe da fumaça, choro e velas? Penso que nossos mortos merecem motivos para celebrar a vida e descansar na eternidade do nada.