SENHORA DAS FLORES
Atravesso o pequeno corredor e paro por instantes no portãozinho. A primeira imagem que vejo é a de um jardim coberto de flores. Em cada uma delas uma expressão diferente. Rosas de todas as cores e de toda beleza parecem me saudar. Dálias brancas, amarelas e violetas curvam-se humildemente diante das rosas. São lindas e fofas com suas pétalas cuidadosamente alinhadas e sobrepostas. Mas, sem querer menosprezar as dálias, as rosas são mais lindas. Nelas, mesmo simples, a beleza alcançou o limite da perfeição. Mesmo a menor é como uma rainha e impera soberana em qualquer jardim. Enche os olhos de quem a admira. É suave no toque e no perfume como uma mulher após o banho.
Mas, não quero falar das rosas, necessariamente. Ou de qualquer outra flor que enfeita este jardim. No entanto, não poderia chegar à imagem principal, sem antes me referir a elas, visto que um elo indecifrável as liga.
Meu foco principal é a imagem que vejo entre as flores, e que meus olhos ávidos vislumbram daqui do portão. Eles se fixam num corpo miúdo e ágil que se movimenta graciosamente entre as rosas. Vejo que é uma senhora. Posso ver daqui. As marcas do tempo não lhe tiraram a agilidade, embora os sulcos impiedosos tivessem lhe tirado o viço da pele. Suas mãos magras e delicadas cuidam com esmero sacerdotal de tão maravilhoso acervo. Com a experiência e precisão de um cirurgião plástico, avalia o que pode ser feito e minuciosamente, corta um galho torto aqui, tira uma folha seca dali. Admira, num leve toque, uma flor que desabrocha deslumbrante, ou um botão adormecido esperando sua hora. Nada lhe passa despercebido. Conhece todas as flores do jardim. Sabe o dia em que uma desabrochou gloriosa. Sabe quando as pétalas murchas de outra despencaram sem vida no chão batido, formando um tapete plácido.
É como uma rainha cuidando de seus súditos. Naquele momento, a senhora das flores reina absoluta. As flores apenas se curvam a ela. Como gratidão por tanto cuidado e amor recebido, desabrocham cada dia mais lindas. Não vejo obsessão em seus gestos lentos e certos. Apenas uma dedicação religiosamente intrigante. Calmamente, toca cada uma das flores como se tocasse as contas do rosário, contemplando os mistérios do amor e da paz. Não tem pressa. Seu mundo é aquele mundo. A beleza das flores é a beleza da sua alma.
Meu rosto se abre num sorriso mudo diante de tanto esplendor. Aquela cena cândida ofusca meus olhos. Expressar dignamente cena tão envolvente, não posso. Não porque eu não queira. Mas, porque me falta vocabulário suficiente para descrevê-la. Fico ali parada. Segundos apenas...
De repente, como se pressentisse uma presença, seu olhar se volta na minha direção. Eu fora descoberta. Minha tarefa observadora havia terminado. Seus lábios finos se abrem num sorriso. Um sorriso ainda mais contagiante do que seu olhar.
Decidida, caminha na minha direção, gingando o corpo miúdo e ágil. Sempre fora assim. Decidida. As durezas da vida não lhe deram tempo de ter dúvidas. Não a conheci em outros tempos. Mas sei que a vida não lhe fora muito generosa. Aceitava toda a carga que lhe impunha para carregar. Porque assim era preciso. Não tinha escolha. Teve todos os motivos para ser uma senhora amarga e triste. No entanto, superou a tristeza, as amarguras e a vaidade. Sua vida é sempre um sim contínuo. Para Deus e para sua própria vida pela qual luta com todas as forças.
Agora me abraça forte e suavemente, como se tocasse suas flores. É sempre assim. Ela toca as pessoas como se tocasse suas flores. Com o mesmo sentimento, a mesma devoção. Ela é envolvente. Envolve-nos só com seu sorriso e seu olhar; com sua voz vibrante e macia. Em instantes, se desliga de suas flores. Abandona seu palco mais belo. Fim do primeiro ato. No segundo ato que começa, faz de nós personagens principais de sua comédia. Envolve-nos tão decididamente. Relutar? Nem pensar.
Conversas que falam de pessoas e do passado nos levam noite adentro, entre beliscos em um doce de leite ou banana. Um queijo fresco, que ela gentilmente nos oferece sem se desligar das histórias e das saudades que nos fazem suspirar. Eu apenas ouço, inebriando nos contos que saem de seus lábios cheios de sabedoria e religiosidade. Na minha imaginação crio a imagem do que fora a sua vida e me perco olhando-a colorir o mundo que agora vive. Um gole de café quente aquece a garganta sedenta de palavras. O líquido quente aquece o corpo e espanta o sono que teima em pesar as pálpebras. Outro gole de café e mais uma rodada de contos... Devagar e lentamente, as horas se vão.
Até que a cortina do dia se fecha. Sem pressa, os risos e conversas se misturam ao pipilar dos grilos, escondidos entre as folhas. Eles são os únicos seres, além de nós, que ainda ousam quebrar o silêncio. Lá fora, a noite faminta já engoliu o dia, e cobre com sua garganta negra as flores do jardim. Sorrateiramente, como se não as quisesse despertar, saio lentamente com meu esposo. Transpomos o portãozinho e atravessamos o pequeno corredor escuro. Já é tarde. Meu olhar já saudoso se volta para trás. A senhora das flores ainda está lá, parada no portãozinho. Sua mão indecisa me acena numa breve despedida.
( Retirado de " Escritas e Memórias" -crônica em homenagem a minha madrinha de crisma)
Atravesso o pequeno corredor e paro por instantes no portãozinho. A primeira imagem que vejo é a de um jardim coberto de flores. Em cada uma delas uma expressão diferente. Rosas de todas as cores e de toda beleza parecem me saudar. Dálias brancas, amarelas e violetas curvam-se humildemente diante das rosas. São lindas e fofas com suas pétalas cuidadosamente alinhadas e sobrepostas. Mas, sem querer menosprezar as dálias, as rosas são mais lindas. Nelas, mesmo simples, a beleza alcançou o limite da perfeição. Mesmo a menor é como uma rainha e impera soberana em qualquer jardim. Enche os olhos de quem a admira. É suave no toque e no perfume como uma mulher após o banho.
Mas, não quero falar das rosas, necessariamente. Ou de qualquer outra flor que enfeita este jardim. No entanto, não poderia chegar à imagem principal, sem antes me referir a elas, visto que um elo indecifrável as liga.
Meu foco principal é a imagem que vejo entre as flores, e que meus olhos ávidos vislumbram daqui do portão. Eles se fixam num corpo miúdo e ágil que se movimenta graciosamente entre as rosas. Vejo que é uma senhora. Posso ver daqui. As marcas do tempo não lhe tiraram a agilidade, embora os sulcos impiedosos tivessem lhe tirado o viço da pele. Suas mãos magras e delicadas cuidam com esmero sacerdotal de tão maravilhoso acervo. Com a experiência e precisão de um cirurgião plástico, avalia o que pode ser feito e minuciosamente, corta um galho torto aqui, tira uma folha seca dali. Admira, num leve toque, uma flor que desabrocha deslumbrante, ou um botão adormecido esperando sua hora. Nada lhe passa despercebido. Conhece todas as flores do jardim. Sabe o dia em que uma desabrochou gloriosa. Sabe quando as pétalas murchas de outra despencaram sem vida no chão batido, formando um tapete plácido.
É como uma rainha cuidando de seus súditos. Naquele momento, a senhora das flores reina absoluta. As flores apenas se curvam a ela. Como gratidão por tanto cuidado e amor recebido, desabrocham cada dia mais lindas. Não vejo obsessão em seus gestos lentos e certos. Apenas uma dedicação religiosamente intrigante. Calmamente, toca cada uma das flores como se tocasse as contas do rosário, contemplando os mistérios do amor e da paz. Não tem pressa. Seu mundo é aquele mundo. A beleza das flores é a beleza da sua alma.
Meu rosto se abre num sorriso mudo diante de tanto esplendor. Aquela cena cândida ofusca meus olhos. Expressar dignamente cena tão envolvente, não posso. Não porque eu não queira. Mas, porque me falta vocabulário suficiente para descrevê-la. Fico ali parada. Segundos apenas...
De repente, como se pressentisse uma presença, seu olhar se volta na minha direção. Eu fora descoberta. Minha tarefa observadora havia terminado. Seus lábios finos se abrem num sorriso. Um sorriso ainda mais contagiante do que seu olhar.
Decidida, caminha na minha direção, gingando o corpo miúdo e ágil. Sempre fora assim. Decidida. As durezas da vida não lhe deram tempo de ter dúvidas. Não a conheci em outros tempos. Mas sei que a vida não lhe fora muito generosa. Aceitava toda a carga que lhe impunha para carregar. Porque assim era preciso. Não tinha escolha. Teve todos os motivos para ser uma senhora amarga e triste. No entanto, superou a tristeza, as amarguras e a vaidade. Sua vida é sempre um sim contínuo. Para Deus e para sua própria vida pela qual luta com todas as forças.
Agora me abraça forte e suavemente, como se tocasse suas flores. É sempre assim. Ela toca as pessoas como se tocasse suas flores. Com o mesmo sentimento, a mesma devoção. Ela é envolvente. Envolve-nos só com seu sorriso e seu olhar; com sua voz vibrante e macia. Em instantes, se desliga de suas flores. Abandona seu palco mais belo. Fim do primeiro ato. No segundo ato que começa, faz de nós personagens principais de sua comédia. Envolve-nos tão decididamente. Relutar? Nem pensar.
Conversas que falam de pessoas e do passado nos levam noite adentro, entre beliscos em um doce de leite ou banana. Um queijo fresco, que ela gentilmente nos oferece sem se desligar das histórias e das saudades que nos fazem suspirar. Eu apenas ouço, inebriando nos contos que saem de seus lábios cheios de sabedoria e religiosidade. Na minha imaginação crio a imagem do que fora a sua vida e me perco olhando-a colorir o mundo que agora vive. Um gole de café quente aquece a garganta sedenta de palavras. O líquido quente aquece o corpo e espanta o sono que teima em pesar as pálpebras. Outro gole de café e mais uma rodada de contos... Devagar e lentamente, as horas se vão.
Até que a cortina do dia se fecha. Sem pressa, os risos e conversas se misturam ao pipilar dos grilos, escondidos entre as folhas. Eles são os únicos seres, além de nós, que ainda ousam quebrar o silêncio. Lá fora, a noite faminta já engoliu o dia, e cobre com sua garganta negra as flores do jardim. Sorrateiramente, como se não as quisesse despertar, saio lentamente com meu esposo. Transpomos o portãozinho e atravessamos o pequeno corredor escuro. Já é tarde. Meu olhar já saudoso se volta para trás. A senhora das flores ainda está lá, parada no portãozinho. Sua mão indecisa me acena numa breve despedida.
( Retirado de " Escritas e Memórias" -crônica em homenagem a minha madrinha de crisma)