Os mortos

O instrumento agora está a um canto, triste e mudo no seu suporte metálico. O pó que é retirado de sua madeira envernizada, na mesma pisadinha que da mobília, acaba deixando vestígios por sob as cordas, no vão entre seu ponto de partida do cavalete e o rastilho, também nas junções do trocole com a caixa acústica e pelo braço afora ao rés de cada um dos dezenove trastes até a boca sonora, o que denuncia sutilmente o abandono em que se encontra. Às vezes a indiscrição de um amigo ou outro esquadrinha a razão da inatividade, digo que é falta de ocasião apenas, mas a verdade é que a inspiração fugiu, embarcou na mesma nau dos desencantos que levou os sonhos coloridos da juventude. Não. Não foi assim tão de repente nem é tão dramático. Aconteceu naturalmente. De forma tão gradativa quanto o pratear dos meus cabelos e o arquear das linhas de expressão do meu rosto. É um processo lento, não obstante progressivo, sem impacto e sem dor, uma vez que em ritmo acompanhável, apenas sofrível pela absoluta inexorabilidade do tempo.

É necessário continuar. Decidir se se escolhe um trajeto ou se se deixa levar pela correnteza, de qualquer modo é forçoso seguir, colocar o coração à larga, como diriam os meus antigos no seu modo simples de justificar a resignação. A verdade é que as coisas boas da vida sempre se despedem, também as más, só que a gente lamenta mais pelas boas que se vão, do que comemora a ida das ruins. Um dia o homem do jaleco branco te proibirá de consumir ovos com bacon, chocolate, sorvete, maçã de peito, cerveja, café... A impressão que você terá no primeiro momento é que ele está te dizendo: deixe de viver senão você morre. Tá! Beleza! Depois você irá descobrindo com o tempo que precisava mesmo abrir mão de alguns prazeres para alcançar alegrias ainda maiores.

O instrumento me recorda tempos de alegrias diferentes: os saraus e as serestas, os festivais com algumas premiações, a canção para a namorada, as tardes de sábado com os amigos, as composições... Quantas! Quantas! Às vezes a cabeça reprisa trechos melódicos cuja letra se perdeu no tempo. Outras vezes são os versos que reaparecem em velhas anotações, páginas amareladas que tentam precariamente imortalizar uma obra, mas a melodia se se esboroou nos confins da memória.

Quando a morte surpreendeu um velho companheiro das serenatas e propagador das canções que eu compunha, levou consigo parte da minha obra que só ele guardava na memória. Tempos depois sua viúva visitou-me em meu atelier. Trazia um envelope pardo com papéis amarelados, contendo letras cifradas de canções inéditas de que eu não mais me lembrava, ela desocupava as gavetas do falecido, julgou que podiam me interessar. Fiquei emocionado revendo minha caligrafia do tempo de moço, mais desenhada e menos ansiosa, relembrando passagens havia muito esquecidas. A voz, a rizada, as expressões cômicas do velho amigo continuam vivas na minha memória, mesmo as imagens do seu rosto e do seu caminhar, embora ligeiramente esmaecidas, continuam vivas na lembrança, a perpetuar sua presença no mundo.

Os mortos! Os mortos são os que se foram sem deixar amigos.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 01/11/2019
Reeditado em 01/11/2019
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