Setembro

No dia que Pai tirou o bigode foi estranho. Parecia outra pessoa. As velhas poltronas vermelhas na sala, emparelhadas, onde tantas vezes ele cochilava vendo o Jornal Nacional. Acordava e balançava as pernas. Ainda ouço o som das sapatilhas esfregando no piso amarelão, aquelas que ele ganhou do Danga, na antiga casa da Boa Vista.

Deu que nos reunimos os quatro na sala. Queria tanto poder voltar àquela cena, para ouvir de novo as falas simples, filtradas de cotidiano. Ficou boa a fotografia! Meu Pai olhando com doçura a bola de dente de leite que eu segurava; a Mãe com seu velho sorriso de amiudar os olhos.

Eu no meio dos dois, com o olhar perdido de timidez. Devia de ser ensinado às crianças desde cedo que os momentos mais simples são grandiosos e nunca mais se repetirão. O tempo é uma areia fininha que não se deixa segurar.

O dia findava. Era a hora do mesmo ritual: recolher os ovos. De ninho em ninho, lá ia eu, menino, oito anos e chinelinho de dedo, camiseta e calção. Antes do banho, era sagrado: trazer pra cozinha a produção diária das galinhas.

Mãe pegava os oito ou dez ovos e perguntava se eu olhara todos os ninhos. “Sim! Um por um!”. No paiol, na casinha da carroça, na garagem, no barracão. Deixara em cada um o ovo indez, que era para a galinha botar de novo no outro dia e não estranhar o ninho.

Hoje, quilômetros distantes e décadas mais velho, emociono-me ao trazer ovos da mercearia e colocá-los na geladeira. É daqueles dias que a gente fica meio sentimental. Súbito, uma interrogação me corta de alto a baixo: “Ainda sou o mesmo menino que recolhia ovos?”. Sim. Mas também não sou mais.

Não há mais o sítio, não há mais ninhos. Minha Mãe há tempos se foi no entardecer de sua vida. Hoje é só cimento, barulho e fumaça da cidade, lugar em que a noite chega, mas o silêncio não.

E não é que o tempo parece não ter passado? Tudo se assemelha a um breve intervalo entre aquele instante e este. Que doçura ter aqueles momentos recordados! Graças à vida por ter me dado o ofício de recolher ovos na infância! Por ter me dado dois sofás vermelhos na sala para que um dia eu me sentasse entre meus pais.

Agora, quando a tarde vai caindo e o friozinho de outono dá sinais, a saudade sopra e me aquece, remetendo-me à nossa casinha na roça, ao fogão de lenha, ao ovo frito – “Com gema mole, Mãe!” - que recebia de recompensa pelo trabalho feito e por tomar banho antes da friagem.

Já vou, Pai, pegar a bola para tirar a foto! Já vou, Mãezinha! Vou recolher os ovos no ninho da memória que você me pede pra trazer, antes que anoiteça.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 30/10/2019
Reeditado em 18/01/2023
Código do texto: T6783386
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