Heroísmo no Judiciário
O membro da mais alta corte falece repentinamente num acidente aéreo traumático. Isto aconteceu em janeiro de 2017, todos se recordam. Um acontecimento casual e imprevisto, um desastre que merecida e apropriadamente consterna grande parte do país. E vem o juiz da província, que todos hão de se recordar também, hoje importante ministro de Estado, não sabido se instado, então, espontaneamente, transmitir sua mensagem de sentimentos com o passamento indesejado e o chama de herói.
Em respeito à memória do magistrado supremo deve-se afastar de imediato esta qualificação, posto que herói ele não era. Ele devia ser lembrado, reverenciado e homenageado pelos seus autênticos predicados, como a condição de autoridade importante da nação, seu conhecimento e sua reconhecida competência no desempenho de suas funções, enfim, a grande perda que a sua súbita ausência representou para o sistema de governo nacional.
Herói ele não era e nunca foi. Não era um homem divinizado, não era distinguido por ações extraordinárias na guerra, não era protagonista de obra histórica. O que a referência heroica fez foi mostrar bem, isto mostrou, a cabeça do juiz provinciano. Assim como o juiz provinciano também se via nas tarefas do seu trabalho, que identificava como um combate, e sabia que a população o enxergava como um verdadeiro comandante-em-chefe da grande operação. Toda essa romântica "milicianização" das atribuições do judiciário definitivamente não é, e nunca foi, saudável para a democracia.
E antes que se venha instalar uma indevida polêmica de que o conceito é trajado no sentido figurado, defende-se a pertinência do ora exposto. Não há de caber tal linguagem ao se referir à retidão do sistema judiciário. Pois o perigo – real, não alegórico – é a crença no sentido heroico e suas consequências. Como será visto. Para que fique bem claro, herói no sentido figurado é o Zé Gotinha.
Durante manifestações populares no passado recente em apoio à grande operação, sempre houve a exposição de bonecos infláveis tamanho gigante representando a celebridade judiciária em trajes de super-heróis. Americanos. Cartazes e fantasias idem. A própria infantilidade emocional do culto a celebridades invocava mais a idolatria do que o reconhecimento austero da competência técnica ou da respeitabilidade, que é o que deveria se consagrar a um juiz.
Naquele mesmo dia do acidente, 19 de janeiro de 2017, o maior jornal do país publicava entrevista em que uma procuradora federal, do também maior estado do país, saía em defesa do seu colega procurador da mesma província do juiz. Coordenador de força-tarefa – mais uma expressão de reminiscências militaristas –, ele estava sendo acusado por um delegado da Polícia Federal de “querer bancar o herói”. Mesma acusação, ficamos sabendo pela mesma matéria, feita por outros setores do Ministério Público.
É tudo muito heroísmo para o nosso gosto democrático. É nefasto e muito inquietante todo esse “romanceamento” de heroicidade, tão placidamente aceito pelo cidadão comum, quando se trata de agentes e de ações do poder judiciário. Porque o que houve, agora se toma conhecimento, foram abusos e arbitrariedades em doses diárias também normalmente aceitos pela sociedade e pela imprensa como atos de bravura.
A justiça, como panteão de heróis, não estará jamais a buscar a verdade.
O herói não faz justiça. O herói é o justiceiro que defende a sociedade, pugna o risco à ordem pública e, ao seu modo próprio, vai justiçar com a permissão tácita de poder estar à margem da lei. Isso – a defesa das leis – é para magistrado.
O problema do herói é que ele vai se convencer que sua missão está acima desse capricho de seguir o conjunto de normas, a prescrição que determina direitos e deveres dos cidadãos. O problema do herói é que ele vai precisar constantemente de vilões para manter o mérito da sua existência e acesa a chama da veneração própria.
A custo vamos acabar concluindo que instituições democráticas fortalecidas não deveriam correr risco com a morte de autoridades, por mais emblemáticas que possam ser, como temem os candidatos a personagens épicos e redentores. E a custo vamos concluir que seria simplesmente bom viver numa nação de simples e bons juízes.
E deixar as espetaculosidades nos gibis das bancas de revistas.