Novembro

O renque-renque do milho passando no ralo. Tem sons que a gente nunca mais vai esquecer. Por que? Ainda é cedo para pensar nisso.

Amanhã tem mingau de milho.

“Pode comer quente não, meu filho. E você já jantou”.

A noite fechou de vez e nem sete horas são ainda! Essa época...

“Mãe!”.

“Fala, Zé”.

“Posso pedir para você nunca morrer?”. Silêncio.

“Vai dormir na casa do seu primo amanhã mesmo?”, ela desconversa.

“Sim”, emendo.

“Você lembrará sempre de se cuidar, filhão?”.

“Amanhã ou sempre Mãe?”. Novo silêncio.

Estou no fio tênue de uma lembrança de quase quatro décadas. Qualquer movimento brusco e seria o fim. Respiro. Corro o olhar pela cozinha procurando um assunto mais leve. As telhas já começam juntar aquele mofo branco por baixo.

“Queria uma botina nova pra festa do Bom Jesus!”.

“É em agosto ainda, menino. Nem virou o ano”.

Ela ainda está de costas, na pia. Acabou de ralar o milho. Um calafrio me corta: o fluxo de consciência deve estar no final. Por que ela não se virou nenhuma vez? Queria tanto ver seu rosto... Ela adivinha meu pensamento.

“Agora não meu filho. Vai escovar os dentes pra dormir”.

“Mas amanhã nem tem aula!”.

“Você vai precisar estar descansado. É muito o que terá de fazer, Zé. E eu não vou poder te ajudar”. Noto que sua cabeça se abaixa devagar.

“Pra onde você vai amanhã, Mãe? É sábado!”.

Foi meu movimento fatal.

“Tô falando não é de amanhã, meu filho. É da vida”.

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 26/10/2019
Reeditado em 26/10/2019
Código do texto: T6779662
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