Entre Sapiens e Canídeos
Maíra avisa pelo celular que Dolly morreu:
- Estou muito triste. Foi sacrificada - diz minha filha.
Imediatamente volto à cena da tenra infância: o vira-latas Sultão, cachorro de meu avô, com hidrofobia, sacrificado por arma de fogo, como se usava. Voltaram à lembrança os ganidos de agonia pelos tiros parciais recebidos e o súbito alívio de sua dor, quando papai, decidido, fez o que dois outros vizinhos não conseguiram: o disparo de misericórdia. Sultão foi enterrado junto a um pé de cambuí e despedido deste mundo por um cortejo infantil.
Volto também à casa de meus pais, onde os irmãos mais novos, ainda crianças, recolhiam incontáveis cães de rua. Certamente davam-lhes abrigo, mas não o cuidado constante necessário. E eu estranhava encontrar cachorros sujos, alimentados com restos de comida humana, doentes, quadris deslocados, pernas quebradas, olhos esbugalhados por atropelamentos e raspões de carros naquela rua estreita. Criar animais como tem que ser dá muito trabalho, preocupação e sofrimento, pois os cães também morrem.
Minha filha continua:
- Dolly morreu com 16 anos e 5 dias.
Está triste, perdeu o ente querido. Daí penso nas muitas vezes que fiz pouco caso de pessoas que se emocionavam com a morte de seus animais de estimação, como se não fosse dor legítima. Vinculava isso a futilidade, coisa de ricos.
Agora é minha vez. Passo o dia entristecido, rememorando a curta convivência com aquela poodle branquinha. Lembro-me de seus primeiros meses de vida, no começo dos anos 2000, quando passeávamos pelas ruas de Foz do Iguaçu. Ela, energia e alegria pura, disparava atrás de borboletas e lagartixas, curiosa como toda criança. Farejava por debaixo dos portões, parava para fazer xixi e continuava abruptamente a explorar o mundo. E eu correndo atrás. Às vezes, armava confusão com outros cachorros na rua e, se havia reação, puxava a coleira e dá-lhe correria outra vez. E eu atrás, arrastado.
Outros recortes da vida de Dolly remetem ao tempo em que, apesar de ter seu cantinho no chão, subia sorrateiramente na cama de minha filha e se encolhia a seus pés. Maíra sempre gostou que lhe coçasse as costas para dormir. Às vezes, adormecia a seu lado e Dolly se aproveitava para dormir na cama. Sabia ser proibido, daí me lambia os pés, empinava as orelhas e me olhava inquisidoramente,” puxando conversa”. Poodles são sabidos.
Um tempo atrás, depois de uns 10 anos, fui vê-la em Brasília. Ela passou a viver no apartamento de Carol, sua “tia”, porque a “mãe” tinha se mudado para São Paulo. Mesmo depois de muito tempo, bastou entrar no apartamento para reconhecer-me pelo olfato e pular em mim, enlouquecida de alegria. Já velhinha e cega, cuspindo os dentes pelo chão, ainda tentava saltar nos braços do “avô”, como se fosse aquela bebezinha. Era comovente! Mais comovente só Argos, o cão de Ulisses: segundo a lenda, reconheceu o dono depois de 20 anos de ausência. Mas era uma lenda e, além disso, reza o tango: “veinte años no es nada”.
O certo é que nunca mais brincarei com Dolly. Nunca mais. Toda vez que lembrar-me disso, meus olhos se encherão de lágrimas como ao recordar qualquer Sapiens querido, já morador do andar de cima. Sapiens e Canídeos, íntimos desde a primeira noite de luar, somos iguais: não sabemos o que nos espera do outro lado e nem o que vimos fazer do lado de cá.
Religiões, filosofias, ciência, tudo tenta explicar essa dúvida arcana, porém nada satisfaz plenamente e permanece aquele enorme ponto de interrogação com que termino o parágrafo anterior. E parece que os animais estão na mesma. Num documentário recente na tevê, um grupo de girafas vela o cadáver de uma companheira morta, como se a encaminhassem para o desconhecido.
Há também um vídeo na internet mostrando Mama, uma matriarca chimpanzé. Aos 59 anos, consciente de que está à beira da morte, recusa-se a comer. Só recupera a alegria ao receber a visita do Sapiens que a tinha cuidado quando jovem num zoológico. São momentos emocionantes: Mama arreganha a boca em sinal de alegria, as expressões ganham vida de novo e os dois se acariciam com ternura. Morreu feliz depois daquele reencontro.
Elefantes, baleias, golfinhos, macacos, borboletas e passarinhos, orquídeas e bromélias, todas as criaturas dividem conosco o mistério da existência neste planeta azul. Tola vaidade, vã cobiça, não somos os reis da Criação.
Voltando a Dolly, digo: "requiescat in pace", “anjinha” peluda que subiu para o Céu. Se os Sapiens acreditam que há uma recompensa no andar de cima, como não haverá algo assim para premiar criaturinhas tão doces, frágeis e fiéis como você? Vai com Deus.