Míopes e o mundo

— "E aí, tá ficando bom?"

Acho engraçada essa pergunta que cabeleireiro faz a míopes em salão de beleza, enquanto corta o cabelo do cliente. Não faz apenas a míopes, é verdade; faz a quase todos os clientes, mas aos míopes é uma pergunta que se revela cômica, beirando redundância, porque os míopes, longe de seus óculos, são péssimos opinadores de estéticas palpáveis. Outro dia eu estava na feira de União dos Palmares, sem meus óculos, que estavam no conserto, quando uma senhora, em frente a uma barraca de roupas e com um vestido nas mãos, me parou. A senhora, muito educada e da qual, como se imagina, não me lembro com clareza dos traços faciais, — sei que era "senhora", porque era como a vendedora da barraca a tratava —, parou-me para pedir minha opinião acerca do vestido que pretendia comprar.

Eu, com todo meu desconhecimento sobre moda agravado pela ausência dos óculos no nariz, disse-lhe que o vestido não combinava com seu tom de pele nem com os traços faciais. "Você tem certeza?", retrucou-me. "Não. Eu não tenho certeza. Sou míope.", disse-lhe, e aquela senhora pareceu aliviada com a descoberta. "Poxa, que bom. Ainda bem que você é suspeito para opinar sobre questões estéticas.", talvez tenha imaginado e, em seguida, vertido um riso largo do rosto, desses que nós, míopes, não percebemos a alguns palmos de nós. Mais adiante, encontrei à minha frente uma calçada dessas altas que os sadios da vista desviam-se de longe, mas eu, na condição de míope longe dos óculos, dei de canela na calçada de cimento e aço.

"Palavronhei" a calçada, é claro, mas ainda mais quem teve a ideia de fazê-la àquela altura. Por acaso, o habitante da cidade que teve o pouco juízo de construí-la desconhece a existência dos míopes? Ora, saiba ele que nós, míopes, somos muitos, e segundo a estatística, em 2050, seremos ainda mais. A previsão é de que atingiremos a metade da população canarinho. Portanto, vá, amigo, adequando suas edificações aos míopes de agora, e principalmente aos de amanhã, que, como apontam os números, serão muitos e exigentes. Mas isso não tem acontecido: o Mercado, ainda, não viu os desejos de consumo e de vida dos míopes.

A impressão que tenho é a de que o mundo — este de cimento, muitas máquinas e pouco barro — não foi construído para usufruto dos míopes. Outro dia recente fui ver um filme em 3D e tive que, para assistir à película, usar dois óculos, o de grau e o 3D. Foi uma experiência ruim, cara e incomodativa. Quem inventou o 3D poderia ter se visto na situação de míope e criado uma criação menos nociva a nós que precisamos de óculos de muitos graus para enxergarmos o mundo em seus tons de cinza.

Nós, míopes, requeremos do mundo nossa condição de habitante, e não apenas de consumidores. Que as indústrias forneçam-nos em seus produtos informações em letra e tamanho compreensíveis. Não é justo precisarmos de lupa para identificarmos no rótulo do produto tal que ele tem dez por cento de sódio, trinta de potássio, o resto de corantes. E os cartazes de promoções, senhor Mercado? Dá para fazê-los em letra maiúsculas e garrafais? Ora, não queremos perder promoções, saiba. Nada de promoções em letras miúdas, não desejamos espremer nossa vista para sabermos que leite estamos levando para casa, se desnatado, integral ou de cabra.

Ora, deixe-nos esse esforço de apurar a vista para atividades indispensáveis, como quando encontramos alguém que nós parece familiar à primeira vista, mas embaçada a imagem, apertamos os olhos, diminuímos o ângulo de percepção e lá está elucidada a dúvida: é só mais um estranho na multidão. Deixe-nos, senhor Mercado, viver nossos amores à segunda vista, pelos menos, já que à primeira nós é custoso e revela-se suspeito. Permita-nos, enfim, senhor Mercado, reconhecer o paradeiro de nossas ilusões — e aos cabeleireiros a destreza de estarem sempre sóbrios e de excelente senso estético.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 19/10/2019
Reeditado em 19/10/2019
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