NO QUINTAL DA MEMÓRIA

Quando eu era menina, havia uma árvore no meu quintal que eu amava e era para mim fonte de vida e alegria. Eu a abraçava e era encantada por ela. Ao longo das estações, acompanhava entre suas folhas os matizes do céu. Eu a admirava e me alimentava com os seus frutos e me aninhava entre seus galhos e me servia de sua sombra como abrigo para os meus devaneios.

Era uma mangueira a árvore de minha infância e ficava na divisa do terreno vizinho. Esse fato trazia muitos dissabores para o meu pai, homem de paz, cujos valores nunca deixei de observar. Isso trazia para ele desconforto duplo: sabia que, para não se desentender com o vizinho, precisava cortar a mangueira, sabia que, cortando a mangueira, iria me magoar.

Meu pai era alegre, espirituoso, mas não sabia muito bem como demonstrar afetos. Meu pai, a seu modo, me amava profundamente, mas não queria aborrecimento, não queria abalar a paz que priorizou para o resto de sua existência. O que fez, então? Silenciosamente, descascou o tronco e impediu que seiva circulasse. Demorei muito a entender o que se passava. Ainda não entendo... Vi que as flores rareavam... Vi as primeiras folhas secando, vi os primeiros galhos caindo com a ventania e indo embora na enxurrada. Ele fez com que a fonte de vida morresse aos poucos, pois não tinha coragem de fazer de outro jeito. Meu pai me amava e matou a fonte da minha felicidade porque queria paz. Não sei como se vive depois disso. A luta pela sobrevivência apressou o esquecimento e mostrou a ele (e a mim) o caminho...

Qual lápide que precisa ser cerrada, foi completamente fechado o muro que separava as duas casas, eliminando o espaço livre onde a mangueira se ajeitara em busca de sua existência. Fim.

Até hoje sinto em minha boca o doce daquela manga de sabor único, que eu disputava com os pássaros. Até hoje sinto a dor da árvore em mim. Até hoje sonho em ter novamente uma mangueira no quintal, que me abrigue e me ofereça o seu tronco para eu me balançar sem pressa, pois, agora, o amor que me habita quer se deixar ficar.

Criados os filhos e netos, meu pai queria rapadura e pão. Queria água na mesma caneca de alumínio e nenhuma árvore (ou pássaro, ou gato, ou cão, ou religião) para tirar seu sono. Era um cansaço da vida. Precisei, por amor a ele, aceitar. Queria a paz da solidez. A paz da solidão. E, de tanta paz e tanto silêncio, um dia foi parando...Deixou de jogar sinuca com os amigos, deixou de ir ao banco, deixou de ir ao quintal, deixou de ver TV, de ler, deixou de conversar e começou a trocar os nossos nomes, até não mais nos reconhecer. Até não mais se reconhecer...

Ainda sinto o gosto da manga madura em minha boca... Ainda sinto...

Sinto muito...

Stella Motta
Enviado por Stella Motta em 17/10/2019
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