CRÕNICA SOBRE UM ATOR DA PRAÇA

CRÔNICA SOBRE UM ATOR DA PRAÇA

Havia algum tempo não se importava mais com ultrajes e vilipêndios desferidos contra si quase diariamente. Ator fracassado, bêbado, paletó roto, doente, desmiolado. Não era falta de amor-próprio ou estima decadente. Simplesmente não se importava com quase nada. Só não gostava de ser chamado de vagabundo. Certa ocasião, além de ser assaltado bem no centro de São Paulo, foi ainda chamado de vadio pelos meliantes. Apanhou, mas também bateu. Assim, quando a dona do bar teatro onde estava chegou perguntando se sentiram saudades dela, pois retornara de viagem havia poucos dias, André viu-a mais bonita,(maldito dia em que não vos vi feia!) olhos verdes faiscantes, sobrancelhas que combinavam... Foi abraçada e cumprimentada pelos amigos e clientes, André fez menção de abraçá-la:

– Você não. Não basta o que fez ontem aqui. Se quiser pode ir beber em outro bar, da minha mão não mais sai nenhum copo para você.

– ....... Ele ficou sem fala.

– Ah, não lembra... Você ficou pelado.

Aquilo soou estranho em sua cabeça. Não se lembrava de ter ficado nu no bar. Somente em cena, mas isso quando era bem mais novo, agora mais raramente na frente de outra pessoa. Será que aconteceu?... pensou... que horário foi?... se tivesse sido depois das 5h tudo bem, a maioria é pessoal da casa e tudo pode acontecer, mas se tivesse sido no horário do público... nesse caso também tudo bem... eles entenderiam.

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Mas ter ficado sem roupa ali, definitivamente não lembrava.

Procurou rever todos os passos desde o momento em que chegara à praça na noite anterior. Era sexta-feira. Havia muitas pessoas na calçada e dentro do bar. A peça em cartaz começaria em 20 minutos. Pediu uma bebida e ficou olhando a mostra de cartazes das peças ao lado da bilheteria. Entrou um americano loiro de estatura mediana que, carregando uma sacola plástica com uma Pepsi, apontava de perto para um dos cartazes e dizia alto para a moça que o acompanhava:

“Bõõamba”, “Bõaamba”. Algumas pessoas ficaram preocupadas, mas o casal saiu conversando em inglês. Um senhor comprou um ingresso. Tocou-se o sino. O público entrou para assistir à peça.

André passou ao lado das mesas e ficou próximo ao balcão. Estavam todas ocupadas. Ficou observando. Em uma, um rapaz de camiseta verde, calça bege e tênis tomava cerveja com dois amigos. Um deles portava uma pasta 007 preta, vestia camisa amarela de manga comprida e tinha jeito de agente público federal. O outro, de terno e gel no cabelo, argumentava bem e convencia os demais, que concordavam com ele, parecia um bom sujeito, do tipo para o bem geral do povo. Os três conversavam. O de terno falava, penteava o cabelo, emitia, entrementes, risinhos nervosos e engraçados. O de verde tinha ar inteligente, sagaz, bamba. O servidor público de camisa amarela parecia preocupado, como um pai de filho pequeno doente que acabara de sair do hospital.

Conclui serem atores. Foi à calçada em frente. Flutuou por ele um anão etéreo, sorridente, engraçado. André tinha interesse e gostava de anões, inclusive, um dos motivos por que frequentava aquele local era um anão, isto é, tentava

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descobrir quem era o anão que, em certa noite, conduziu no banco de trás de um carro cor prata uma garota pela qual ficara enamorado em uma cena de cinema. Achando o anão certo, encontraria a garota. Tentou fazer amizade com uma anã, uma atriz, mas ela parou de ir à praça. Era amigo do jovem e distinto Geovani, anão da peça "Tropa de Elite de Guarulhos", que teve mesmo um automóvel vermelho vitiligo, e perguntara-lhe sem resultado satisfatório. Retribuiu o sorriso do nobre anão de gás.

André gostava daquele lugar. Mormente do lado de fora do bar. Sentir o vento. Andar por ali. Observar os ângulos. A catedral gótica à frente, o relógio ogival, o adro, o verde do bosque. A árvore pastel alta em formato redondo do lado direito. O retilíneo enfileiramento lateral dos prédios. A torre.

Do outro lado, o colégio alemão. As muralhas do castelo na esquina. A decoração do rose, as mesas na calçada, o teatrão. Ficou ali sentando no banco olhando as colunas, os espelhos e o colorido do bar. Lembrava um quadro impressionista. A moça de cabelos curtos, atenciosa, alegre, séria e, por vezes, triste do bar. Lá do lado de fora, havia também a fumegação do carrinho do milhomem, chamado Emílio pelo poeta da pequena Londres e milhonário pelo comum, lugar em que Chacal se alimenta e fia e onde o malabarista de veludo e barba grisalha leu cartas de tarô.

Havia ainda as fumaças dos cigarros e do charuto dispersando no ar como pensamentos soltos e fugidios aos quais procurava dar formas e cores. Acabou a peça e o público do teatro foi logo embora. Logo, deduziu, uma vez que se lembrava de tudo isso, não foi nesse momento em que teria ficado nu.

André recordou-se ainda do que aconteceu depois. Encontrara vários amigos e conhecidos, um dos Titãs, bebera. A maioria era pessoal de teatro, mas havia também músicos, dançarinas vestidas de azul e rosa, andarilhos, palhaços, cantores, atrizes de

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branco. Como sempre acontecia, alguns estavam subindo ao pequeno palco do bar para fazer apresentações e se divertir. De maneira que, uma parte de um grupo teatral subia ao palco e fazia uma cena, em geral de peça em cartaz em algum teatro da cidade, outro cantava, tocava instrumento, havia poesia, música.

André se lembra do momento em que pediram para ele fazer o monólogo da Corujinha, personagem de sucesso de uma das peças do Bortolotto, que era seu amigo e tinha doado-lhe todos os direitos sobre essa personagem, que até renderá frutos, alguns papéis em filmes e dinheiro pouco. De tanto insistirem, mesmo já estando alto, mesmo também depois do Mário já lhe ter dito para não fazer a personagem gratuitamente, André subiu ao pequeno palco e ficou ali parado, concentrando-se para fazer a Corujinha. Ficou se concentrando por tanto tempo que dormiu. Só se lembra de ter acordado, sem bem saber onde estava, e as pessoas aplaudindo.

Lembrava-se de outras coisas também, mas não de ter estado nu. Houve uma cena com uma parte de um grupo famoso de teatro, que estava lá para beber muito e se divertir bastante, inclusive com a presença do diretor da peça. Quando pediram ao grupo para dar uma canja da peça, também em cartaz e com casa cheia todos os dias, ouviram o diretor dizer:

“Se quiserem fazer a cena façam, mas façam bem feito”.

Então, o grupo subiu ao palco para dar a canja da cena da peça, na qual um dos atores, o lorde, ficava simplesmente parado de costas para o público. Nesse momento, da mesa do grupo, o diretor falou:

– Lourinho, que você está fazendo?

– Estou em cena...

– Não, não está não. Está faltando profundidade dramática.

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– Mas eu estou de costas.

Lembrava-se de tudo, mas não de ter ficado nu. De modo que, quando a dona do bar falou que ele estava doente e deveria se tratar, não se ofendeu. Somente depois André respondeu como responderia em situação semelhante uma boa personagem interpretada por um bom ator como ele, em tom bem humorado.

– Respeite meu Alzheimer.

-Não se preocupe não, não liga não. disse Jordan.

-Há muito tempo deixei de me preocupar com esse tipo de coisa. Não adianta nada mesmo. E depois se estou doente, estou doente feliz.

FÁBRICA DE ANIMAIS

- Mas mudando de assunto, como foi o show da banda da Fernanda, você está voltando de lá agora? perguntou Jordan.

- Sim. O show foi da Fábrica de Animais. Muito bom. A Fernanda e banda são ótimos, estavam muito bem. Ela, o Flavinho na gaita e percussão, os outros músicos que eu não conhecia, todos eles muito bem. Formam um bom conjunto, uma banda.

-Então a banda é boa?.

- Sim, muito boa. Muita harmonia, ritmo, bem ensaiada, já com cinco anos de estrada, você sabe. O repertório todo deles, músicas próprias. Todas estão no CD a ser lançado em setembro, uma delas em parceria com um poeta...

-Setembro, ouvi dizer que é outubro.

-Em outubro, acho que no dia 27, é o lançamento do CD com show no Sesc Belenzinho. Mas já em setembro, o CD chega da fábrica e estará sendo lançado no mercado. Tem todo aquele trabalho de lançamento, rádios, entrevistas, divulgação na mídia, o Von, redes sociais, quem sabe o Gordo, secretários da Cultura dos municípios, vender o show, esse tipo de coisa.

-É um trabalhão mesmo. Tem que abrir frente. Mas então as músicas são boas. É o que... rock? Quis saber mais Jordan

- É uma banda eclética, rock, blues, baladas até xote tem, uma única faixa mas tem. Além disso, você conhece a Fernanda, ela faz performances incríveis. O trabalho de palco dela é muito bom. As músicas são interpretadas e representadas com aquela voz potente, linda que Deus lhe deu.

-Agora cá pra nós, o lugar da apresentação de hoje não ajuda muito não é mesmo? Disse Jordan

- É um espaço diferenciado, alternativo, feito pra pouco público, uma plateia diferenciada e até privilegiada, diria. Tem café, mesas, sofás, bancos, bebidas, quadros, livros, poltronas. Mas aí você pensa: “um show de rock em um espaço pequeno, com a maioria das pessoas assistindo ao show todo tempo sentadas não vai ser legal.” Mas depois da terceira ou quarta música você pensa “estou em um show de rock mesmo", quero dizer, a banda, as músicas, as performances são tão boas que tudo o mais é compensado pelo prazer de ver e sentir e ouvir aquele espetáculo e não é preciso ficar movimentando meu corpo, externamente e o tempo todo, para dançar.

- Parece que você gostou mesmo do show.

- Gostei sim, também tem a Fernanda D’ Umbra... sua voz e seu modo especial de interpretação...

- Ficou interessado? Acho que ela tem marido. Marido ou namorado, não sei bem.

-Apenas estou falando sobre o espetáculo e depois, você sabe, morei um ano e meio em Portugal, virei navegante.e ela não gosta de barcos.

-Tá bem. Aí você veio pra cá?

- Nos convidaram pra ver outra banda que ia tocar em um clube no hotel Cambridge mas não quis ir. Principalmente depois de Fábrica de Animais. Além do que não conhecia a banda e ouvira dizer que a acústica do local não era das melhores. Assim, disse André , cá estou , mas depois dessa vou com Deus embora. E se despediu à francesa dos amigos da praça.

Escrito por Marcos Pessoa

Marcos Pessoa
Enviado por Marcos Pessoa em 16/10/2019
Reeditado em 26/09/2020
Código do texto: T6771313
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