O Persecutor e a Arte da Mentira
Audiência marcada. Lá estava o réu a fazer o seu dever de casa, lendo as alegações do Ministério e fazendo suas anotações. Tanto tinha que escrever para explicar e desconstruir falácias, que sentia estar a desentortar barras e vigas de aço. Por que toda essa estrutura estava tão distorcida, que o resultado edificado era tão diferente do que ele mesmo até então conhecia?
Quem escreveu este texto acusatório? Por que sempre essa tendência de criminalizar qualquer coisa a qualquer custo, não importa que subterfúgios tinham que ser usados?
Mesmo ciente de que as coisas não são totalmente de um só jeito, a generalização foi inevitável para o raciocínio, e vaticinou: “todo persecutor é mentiroso”. O exercício do seu Ministério é lastreado na mentira. O persecutor precisa da mentira para fazer seu trabalho. Ele omite, distorce, o persecutor mente.
Não é aquela mentira deslavada, descarada, que de tão acintosa não terá nenhuma credibilidade. Não. Quanto mais ele souber usá-la, mais souber dosar, dourar e dar um lustre nela, mais qualificado o persecutor será para o exercício das suas funções. A mentira tem essa característica de função inversamente proporcional entre o despudor e o crível.
Quanto mais disfarçado for, quanto mais sutil, a técnica de colocar doses precisas de mentira no contexto da história a ser contada, melhor será o efeito de distorcer os fatos de modo a ser mais convincente. O disfarce da mentira por meio de omissões, ilações, encadeamentos pseudamente lógicos, faz com que o fim que foi especificado atingir tenha seu caminho pavimentado para quem for consumi-lo. A arte, a engenharia da mentira.
E a imprensa adora. Recebe graciosamente e sem esforço a novidade bombástica que tanto vai agradar seu consumidor: o leitor cidadão – ser humano e, portanto, profundamente interessado na acusação ao semelhante. Quem nunca ouviu um conhecido dizer: “Tá vendo? Esse canalha tem que se ferrar mesmo”.
E ela, a imprensa, não precisará mentir. Manterá a sua elevada função de ser fidedigna com os fatos. Ela não precisa, de fato, mentir. Basta repercutir a mentira dos outros: neste exemplo, as manifestações do Ministério dos persecutores, que já fornecem “fatos” e “evidências” temperados com doses de mentiras diversas, como se fossem pimentas e condimentos, em gotas e pitadas de inferências, lógicas irracionais e raciocínios dedutivos ancorados na névoa de fatos desconexos. São especialistas em harmonizar os temperos e dar sabor aos pratos que eles próprios não degustariam, mas lhe trarão o regozijo pela apreciação da clientela.
São poucos os profissionais da imprensa que se propõem a investigar e analisar os nexos de causa e efeito para poder formar uma opinião própria e independente. E se for o cidadão comum a fazê-lo e ousar se manifestar, corre o risco de ser execrado por querer obstruir o trabalho dos persecutores estrelas e suas investigações perfeitas. É preciso ter cuidado com o que se diz. Liberdade de expressão é para Estado Democrático de Direito.
Como agora se sabe, persecutores são seres infalíveis, mostram as verdades irrefutáveis em cadeia nacional e não admitem contestações, simplesmente porque não cabe. Já viram isso? Não há demonstração maior de que a mentira bem dosada está presente. O fato sem significância vira indício e, automaticamente, o indício vira prova. Tudo desemboca em assertivas categóricas, indubitáveis.
Exemplo real, basta o persecutor dizer que a empresa “xis” é de fachada. Não importa que não seja. Ele não precisa provar. Pronto! Acabou a empresa. Qualquer pesquisa na internet a qualquer tempo sobre a empresa vai trazer a conclusão inquestionável. Dano irreparável. O prato está servido e você não consegue tirar o tempero dele, como não consegue tirar o açúcar do café adoçado se preferi-lo com seu natural e saboroso amargor.
Sempre foi desta maneira? Ou em algum lugar no tempo não era assim? Alguém criou esse monstro? Como isto se deu? Onde ficou sua função original e absolutamente fundamental – a de promover a justiça –, não fundamentalista? Onde está a busca da verdade?
O persecutor, crê-se, não nasceu mentiroso. Ele aprendeu. É um ser humano que foi adestrado para ter certeza de ser especial, escolhido, daquela linhagem que não falha. A sua formação para fazer parte do Ministério lhe deu a capacitação e as habilidades de fazer uso de diferentes doses de variadas mentiras, de tal forma que suas construções de histórias sejam revestidas de uma embalagem de falsa credibilidade.
Talvez a face mais perversa desta formação profissional é que ele mesmo vai acreditar na sua história construída, e a consequência disso é que ele vai ter certeza de sua infalibilidade e messianismo. É aí que mora o perigo.
Tornou-se, sem ser chamado, o defensor das grandes causas, o corajoso, o destemido. Nasceu o paladino.