A ”empregada dos Sarney” : uma crônica da advocacia criminal
O psiquiatra carioca Marcus Cruz, salvo engano, é o autor da frase “seria cômico, se não fosse trágico, matar o canibal e herdar a sua fome”. Pego essa bela frase reflexiva a fim de a parafraseando, poder aplicá-la a um grave crime ocorrido entre os municípios de Estreito e Santa Helena, pertencentes à baixada maranhense, nos idos de 2001, cujas chacotas da população local pela falta de consciência de cidadania por parte de alguns à época dos trabalhos investigativos policial, deram-se em tom discriminatório e vis quanto à dignidade da pessoa humana morta em face da insistência do órgão policial civil na elucidação do crime.
O corpo de uma jovem fora desovado a 10km da cidade de Santa Helena, entre esta e a cidade Pinheiro “a Princesa da Baixada”, terra natal do ex-presidente José Sarney.
Foram realizadas várias diligências em torno do achado cadavérico, da chegada ao local com o isolamento do mesmo, leitura preliminar com a chamada informalidade na visualização mental dos caminhos do possível crime em busca de vestígios na região em trajeto de suposição dentro de um raio de 1km para frente e para trás, tendo como resultado positivo, de logo o êxito da localização de um par de luvas manchadas com tonalidade avermelhada, dando a entender se tratar de sangue coagulado, obviamente.
Ao lado do corpo estavam uma mochila com os pertences da vítima e um copo plástico contendo o epitetado veneno para rato chamado “chumbinho”.
Como recomendado nos manuais de investigação dos crimes contra a vida, foi realizado um profundo levantamento da vida biográfica da vítima. A partir daí, mediante o achado das luvas e a visibilidade do rastro médico-legal da chamada “máscara equimocial facial” (rosto escurecido em detrimento do restante do corpo), outra inicial conclusão não fora, senão que se tratava de um crime de homicídio, nunca de um suicídio por envenenamento, embora com pendências de outras diligências no bojo das investigações iniciais.
As investigações incomodaram tanto que chegaram ao ponto de dizer numa rádio local, na certa alguém que tinha envolvimento direto ou indireto com os autores do bárbaro crime, que “a vítima deve ser bem empregada dos Sarney para que a Polícia desse tanta atenção ao caso”.
Equívoco ou desinformação à vista, pois quanto mais se provoca o tirocínio policial, mais este aguçado busca elementos que convirjam para elucidação completa de um delito, independente da qualificação da vítima, por conseguinte, vítima é vítima e a lei serve para tutelar o direito de todos.
O fato é que, diante das investigações realizadas conseguiu-se identificar o veículo utilizado para desovar o corpo (apenas na cidade de Encruzo só existiam dois modelos do tipo de carro visto na noite anterior em que o corpo foi colocado às margens daquela rodovia, sobretudo pelas características peculiares), apontar os indiciados direto e indireto, os motivos do delito, as denominadas “estórias coberturas” (álibis) utilizados por um dos indiciados (que a vítima saíra do hospital indignada porque não conseguira realizar o aborto), e no socorro da Medicina Legal, desta feita por meio da diligencia policial de Exumação, constatou-se que não havia mais feto e o útero da vítima fora perfurado.
Início da completa elucidação do crime ocorrido com firmamento de autorias, materialidades e circunstâncias.
“Empregada dos Sarney” ou não, um ser havia perdido a vida e o Estado não poderia deixar de dar a resposta devida com a elucidação completa do crime, indiciando os autores, apontando a motivação e as circunstâncias por que se deram toda a trajetória da trama delitiva acontecida (um crime de aborto mal sucedido com sequelas irreversíveis à vítima pela perfuração do útero e outras lesões, associado ao de homicídio por estrangulamento diverso do suicídio maquiado pelos autores).
Mesmo que o senso comum impunha limitações à compreensão das obrigações institucionais, típico de modelo societário ainda bastante incipiente em seu processo de amadurecimento no exercício do respeito à cidadania em seu cotidiano existencial, especialmente quando violada esteja a dignidade da pessoa humana em todas as acepções, o acontecido despertou em toda a baixada maranhense acerca da importância em que se deve dar ao respeito à dignidade da pessoa humana e pelo dever de o Estado de dar a resposta cabível em tempo real diante do nefasto acontecimento, seja qual for a vítima de delito na sociedade. Hoje, nada melhor de também ser bastante acompanhado, fiscalizado e até cobrado ante o novo modelo de advocacia defensiva criminal em curso no país.