Prova de Piano

A sala de aulas de número 13, na qual havia um piano Kawai de armário, sofrido, que já não mais segurava afinação, seria novamente a sala das provas de piano de final de semestre, para todos os alunos de piano da escola de música. Os professores de piano já começavam a compor a banca examinadora ao mesmo tempo em que os alunos iam se achegando e se sentando comprimindo-se uns aos outros num gesto de busca por apoio emocional.

Não havia uma ordem para os alunos apresentarem seus programas. Funcionava na base do voluntariado. Os alunos podiam tocar com ou sem partitura, embora os professores dessem preferência às execuções de cor. Os alunos com mais tempo na escola sabiam que era apenas um ritual, um teatrinho meio macabro, sem a intenção de reprovar. Um mal desnecessário.

Os professores, uns sete ou nove, cochichavam uns com os outros. Não havia uma abertura formal para as provas. Num determinado momento, um dos professores perguntava quem seria o primeiro. Alguém se levantava, dirigia-se ao piano, dizia seu nome, nível e nome do professor e apresentava os nomes das peças que executaria. Muitas vezes era mesmo uma execução.

Os alunos não tinham como se aquecer antes de tocar suas peças, nem de experimentar a sonoridade do piano. Era sentar-se e tocar, recolher as partituras, levantar-se e sair para tomar água e aliviar o suor e o nervosismo. Ao virar as partituras podia-se ver como suas mãos tremiam. Os menores vinham acompanhados de pai ou mãe enquanto os demais, adolescentes e adultos, preferiam que o fiasco fosse visto por poucos.

A cada nota errada, a cada parada, a cada retomada, os alunos que assistiam ao massacre ficavam mais apavorados, pois sabiam que também passariam essa vergonha na frente dos demais. Os professores, por sua vez, abstinham-se de fazer comentários, quer positivos, quer negativos. Mas seus olhares e expressões faciais eram reveladores do mal-estar que era ter de ouvir dezenas de alunos diferentes em execuções tomadas pelo medo e pelo erro.

Chegou a vez de Renato, já adulto, de se dirigir ao piano. Cumpriu o ritual das apresentações e sentou-se. Enquanto ficara assistindo seus colegas tocar, pensou na fragilidade pedagógica dos professores, em como ou tratavam seus alunos do mesmo modo como tinham sido forjados, ou em como mostravam-se incapazes de uma palavra de estímulo ou de relaxamento. Como aquilo podia ser chamado de um fazer musical, pensava Renato. Ali nada lembrava música.

Renato pensava nas oportunidades perdidas pelos professores ao silenciarem diante dos alunos. Por que não ensinar durante a prova e encorajar o aluno a repetir uma passagem errada até fazê-la soar correta? Por que não envolver a “plateia” para expressar apreço e aplaudir e desenvolver o gosto musical? Já que tudo não passava de um teatrinho, por que não o tornar produtivo, até com inserções dos professores para ir desmistificando o pavor de tocar em público? Por que não ouvir o aluno, após sua execução, para saber se ficou satisfeito, como se sentiu e se gostaria de repetir algum trecho? Enfim, Renato via tantas possibilidades didático-pedagógicas desperdiçadas por aquela banca de professores.

Renato estava cansado e desapontado com a escola e com o curso. Tocou desinteressadamente, errou, parou, retomou e terminou. Levantou-se e, antes de sair, convidou os professores para ir ao piano e tocar. Um estudo de Chopin, por exemplo. Logo, uma das professoras respondeu que eles estavam lá para ouvir. Renato retrucou que aquela resposta soava a uma confissão: ela não sabia tocar nenhum dos estudos de Chopin. E eram 24! A bomba fora lançada. Os alunos da plateia se entreolhavam, aturdidos. Como aquilo vai terminar?

Os olhos dos professores transformaram-se em lança-chamas sobre Renato, mas ele não mostrou sinais de abatimento. Voltou à carga e solicitou a presença de um professor ao piano, para tocar um prelúdio e uma fuga de Bach. Ressaltou que a escolha era maior, já contavam 48 peças. Ouviu-se, de alguém da banca, algo como “isso é uma ousadia; um atrevimento!”

Um dos professores ordenou que Renato deixasse imediatamente a sala. Renato respondeu com tranquilidade que sairia, após ouvir um dos mestres tocar algo ao piano. Os professores não tocavam para seus alunos. Por quê? Renato acrescentou que um aluno precisa ver e ouvir seu professor tocando uma peça inteira.

Uma das professoras menos exaltadas lembrou Renato que ele estava estressando todo o ambiente e que isso não era adequando numa prova final. Ele simpaticamente respondeu que essa era mais uma razão para que algum dos professores executasse lindamente uma obra ao piano, para que todos pudessem expressar sua admiração e relaxar.

Renato convidou essa mesma professora para mostrar, ao piano, o que ela era capaz de fazer. Os alunos mais jovenzinhos já riam dessa disputa e de como viam seus professores perderem a parada. Renato ainda sarcasticamente sugeriu que ela poderia vir com sua partitura, caso não soubesse a peça de cor. O importante era tocar, tocar bem, sem errar e sem parar, já que se tratava de uma professora de uma reputada escola de música.

Uma professora se levantou e todos começaram a aplaudi-la. Mas ela apenas se havia levantado para ir até Renato e conduzi-lo para fora da sala. Quando ela se aproximou, Renato ajeitou o banco para ela, mas ela o tomou pelo braço e o quis levar para fora. Renato, graciosamente, apontou-lhe o piano e convidou-a a se sentar. Pois ela recuou e retornou ao seu lugar não sem ter de ouvir um singela vaia.

Renato, satisfeito com os resultados, olhou para todos os presentes e disse que os alunos tocavam mal em público e os professores não tocavam em público, pelo mesmo medo de tocar mal. Emendou, dizendo que poderia ser pior, que os professores não tocassem porque não sabiam tocar coisa alguma que tivesse alguma expressão musical ou pianística.

Sugeriu, por fim, que os professores voltassem a se sentar nos bancos escolares e que experimentassem as mesmas coisas que impunham a seus alunos para que pudessem avaliar a eficácia de suas práticas pedagógicas. Nem notou que a sala estava abarrotada de gente que soubera do bafafá, pelo WhatsApp e se foi infiltrando para ver e ouvir tudo de perto.

Antes de sair, olhou para os professores novamente e perguntou mais uma vez se alguém poderia tocar algo para eles, os alunos. Recebeu só olhares enfurecidos e fulminantes. Saiu.

A prova continuou, assim que Renato deixou a sala. Todos os alunos foram aprovados. No semestre seguinte, a escola não renovou a matrícula de Renato, para seu alívio e alívio geral.