Cri Du Coeur
1; “Pagezuar”.
As frequentes peças de roupas estendidas no varal denunciam a mínima existência de alguém naquela casa. As portas, como também as janelas, estão quase sempre fechadas ou semi-abertas. Ao som de grandes aglomerações, moleques gritando na rua ou de vizinhos discutindo dentro de suas casas, ele sai, coloca a cabeça próximo à grade que cobre toda a extensão da casa, olha por alguns segundos e depois volta. São os pequenos momentos em que o vejo. Quando acordo, suas janelas já estão semi-abertas e algumas peças estendidas. Quando vou dormir, ele já se recolheu há muito – e eu sei pelas janelas completamente fechadas e as luzes da entrada acendidas, a fim de assustar possíveis marginais.
Este é meu vizinho. Seria 1 entre centenas naquela rua, senão fosse a falta de sons minimamente reconhecíveis dentro de sua casa, ou o fato de ser o único ali a não ter filhos, e talvez nem esposa. De vez em outra, avisto uma senhora: por ser aparentemente mais velha que ele, e ele aparentar ter seus 50, imagino ser sua mãe, mas não só pela idade, também pela pouca intimidade que há quando juntos: sem beijos, sem toques, sem carinhos: ela estende uma peça e ele aparece dirigindo-se até o fim da varanda, pronuncia uma frase de pequena duração, ela o responde, ele passa por trás dela e entra novamente. E ponto final. Em épocas de festas ele some por uns dias, porém nunca há visitas em sua casa, nunca. Este de fato é meu vizinho: um homem solitário, velho, que acorda às 7, não trabalha, não tem filhos e talvez nem mesmo esposa, não ouve música, passa a noite vendo TV e vai dormir às 23. Seria 1 entre centenas naquela rua, se não fosse por aquela intimidadora grade bem a frente de sua casa, ou a falta de barulhos em sua casa, ou a visível falta de vida... em sua casa.
2; Metamorfose.
A década passada marcou o nascimento e a morte das Lan Houses. Elas se foram tão rápido quanto surgiram, talvez tenham sido o símbolo de uma época. Eu era só um adolescente vislumbrado com a possibilidade do acesso a internet, das interações rápidas e fáceis, do conhecimento em nossas mãos.
Se saísse cedo do colégio: Lan House; aos finais de semana; Lan House; para todo e qualquer dinheiro que recebia: Lan House. Esta era a vida de um jovem no início dos anos 2000, conhecer o máximo de Lan Houses possíveis. Seja para visitar suas redes sociais, fazer trabalhos específicos, tirar xerox ou jogar jogos de tiro, todos em algum momento da década passada entrara numa Lan House.
Assim como fora as antigas locadoras de filmes, as Lan Houses sucumbiram pouco a pouco perante algo melhor e mais prático. Em seu lugar surgiram as lojinhas de roupas, mercadinhos, lanchonetes e etc., Hoje, por resultado da crise, estes novos espaços estão sendo consequentemente fechados, o que antes eram espaços de alegria e lazer, tornam-se meramente nada. E aos poucos as coisas vão mudando, morrendo, renascendo, morrendo e renascendo. Tornou-se triste andar pelas ruas e não mais a reconhecer como coisa que fora, tudo já não passa de puras lembranças inesquecíveis – é como o prelúdio de um inevitável fim.
3; Tempo.
Não havia celulares e computadores na época, a tecnologia mais interessante era os Walkmans; eram bonitos, eram versáteis, eram modernos. Entretanto, a moda entre as crianças – e eu era uma pequena criança – era o suprassumido Gameboy. Aquilo sim definia as crianças pobres e as crianças não-pobres de toda escola pública. E eu, claro, não era a não-pobre.
Embora todos quisessem ter um Gameboy, havia algo diferente que enchia-me os olhos: os relógios eletrônicos. U-au! Como queria ter um relógio eletrônico, carregá-lo em meu corpo, imaginar ser meu "morfador", tudo aquilo era fantástico pra época. Eu estava almoçando, pronto para ir pra escola, até que ele chegou com meu primeiro relógio em mãos, eu nem pude acreditar que após tanta insistência finalmente o ganhei. Foi um presente do meu pai, porém na minha cabeça lembro-me fortemente da cena da minha tia ajustando-o e colocando-o em meu punho. Uma tia que fez parte de toda minha infância – como uma segunda mãe.
Dois anos mais tarde eu já não tinha relógio e estava no quarto ano, ainda estudando à tarde. Era uma sexta e ela disse que podia sair quem fosse acabando o exercício, eu não achava as respostas, todos iam saindo e eu ficando, fui um dos últimos a terminar. Eu não sabia as horas mas deduzia ser tarde. Saí de lá as pressas. Chegando em casa minha tia já havia partido: “ela te esperou, mas você não chegava", disseram, "não tinha ônibus para mais tarde", insistiram. E naquela noite eu apenas chorei.
Tchau. São 5 breves letras compondo uma simples e breve palavra. É uma breve palavra que, quando não dita, nos engasga a alma. É como um pequeno grito que se acumula todo santo dia, durante toda santa decepção, de toda santa tentativa falha. Um grito calado, constrangido, que nos silencia até que nos tornemos só mais um, dentre dezenas de centenas de milhares; no mundo.
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(Texto que marca meus 4 anos de RL, muito obrigado a todos que me acompanham até então. Vocês são incríveis!!)