A RUA

Nunca havia pensado nisso, nunca havia parado para observar, nunca me passou pela cabeça, que uma rua congregasse e mesclasse tantas facetas. A Rua onde vivi grande parte da minha infancia, me revelou algo incrível...Um gigantesco teatro a ceu aberto.

Desperto com preguiça, olho o relógio fixado na parede sua forma lembra um prato raso, em suas bordas grandes algarismos romanos. O silencio ainda predomina, mas o canto dos galos ecoando pelos campos distantes, anunciam o amanhecer.

Preguiçosamente me estico agarrado ao travesseiro, jogo as pernas em direção ao chão e me levanto sonolento, vou até a janela saudar... a minha Rua.

O sol anuncia a chegada do dia espalhando seu brilho dourado sobre as montanhas que circundam a pequena cidade, encravada ao sopé das montanhas e grotões da serra do Espinhaço, a manhã em Senhor do Bomfim ainda tem aquela sensação fria do orvalho da noite, a rua ainda completamente deserta.

Vou até a cozinha e coloco a chaleira com água no fogo, entro no banheiro, lavo o rosto, a agua está agua gelada, escovo os dentes e retorno à pequenina janela a procura dos movimentos iniciais do despertar da Rua. A bicicleta do seu João, como sempre sob o peitoril da janela ainda molhada pelo orvalho noturno. O barulho da água fervendo me chama de volta a cozinha, despejo o pó no coador e passo um café é forte, o cheiro se espalha pela casa, apanho o meu caneco de louça amarelo adiciono um pouco de açúcar e o encho até a borda. Dou a primeira golada e retorno para a janela.

Não demora muito, como num teatro as cortinas se abrem e começa o espetáculo, embora não tenha roteiro o enredo é real, os atores são reais e a Rua é o palco. Cada som que se propaga é uma cena que se materializa. O maravilhoso canto descontraído de um sabiá sobre os galhos da mangueira, enche o ambiente com sonoras notas musicais, ele vive entre as folhas verde oliva da grande e frondosa mangueira em frente à minha casa, entendo seu canto como um bom dia ao seu estilo.

Ouço o gorjeio dos pássaros descontraídos catando migalhas no chão ainda humido do orvalho da noite, mas repentinamente o tom muda de suave e calmo para ríspido e nervoso, são avisos que denunciam a presença de algum felino faminto perambulando no amanhecer em busca de uma refeição desatenta, presas tem que ser mais espertas que o predador.

Os latidos dos cães ecoando pelos vales distantes, vai acalmando e dando lugar aos sons humanos, o farfalhar dos grilos entre as folhas começam a ficar mais esparsos e menos estridentes, até se calarem por completo, estão cansados da serenata.

À medida que o sol se eleva no horizonte e aquece a terra, a brisa fica mais forte, os galhos da magueira entrelaçados e impulsionados pelo vento produzem estalídos e rangidos. Os sons noturnos agora, são substituídos pelos diurnos.

Vindo do outro lado a rua o som de uma voz feminina familiar e corriqieira.

- Meninos, não esqueçam de trazer a farinha de milho para o cuscuz!

É minha vizinha Dona Dalva, ela acorda com os pássaros, todos os dias seus tres filhos passam em frente a minha janela cantarolando felizes, no fim da pequena rua, de mãos dadas eles caminham sobre os trilhos da linha férrea carregando uma sacolinha de pano branca com um bordado vermelho e azul, estão indo buscar o pão na padaria do seu Divino.

Os sons se misturam, mas não se confundem, agora ouço o barulho inconfundível, é o Jipe verde claro do seu Zeca irmão de dona Dalva.

- Bom dia! Grita ele agarrado ao volante. - Bom dia seu Zeca- respondo.

O som forte e grave do motor vai se esmaecendo enquanto ele desapareçe em meio a poeira onde acaba o calçamento da rua. Com certeza ele vai à roça.

Aos poucos a Rua se agita.

De repente, ouço outro barulho, esse é o meu predileto... Impecavelmente limpa a Rural azul e branca, passa suavemente em frente a minha casa é bem menos barulhenta. Em particular sou apaixonado por este carro, é lindo... Um dia ainda terei um. Seu proprietário é também dono do único armazém da Rua, seu Valentin um espanhol considerado rico.

Novos sons brotam na rua.

- Olha o leiiiiiiiite! Olha o leiiiiiiiite!

O véio Zé do pé do monte o leiteiro, assim é conhecido. Religiosamente às seis e meia da manhã, ele e sua velha mula cruzam a rua parando de porta em porta, entregando o leite fresco da sua pequena propriedade. Da porta de dona Dalva, ouço o inconfundível som do vasilhame de alumínio mergulhando dentro do barril de zinco, pendurado nas laterais da cangalha, em seguia despejado através de um funil, dentro da jarra de vidro transparente. Sinto o cheiro inconfundivel do pão torrado, os meninos já chegaram.

- Olha o leiiiiite!! Olha o Leiiiite!!!  Assim, seu Zé continua até desaparecer no final da rua.

O numero de atores já aumentou muito, o palco agora esta cheio. Sou um expectador atento, alimentando minha inspiração.

O barulho das dobradiças enferrujadas da grande porta de madeira chama atenção, é a oficina do seu Sisi sendo aberta sob o seu alegre assobio. Essa oficina é alvo de algumas brincadeira dos filhos de dona Dalva.

Um casal caminha de mãos dadas sobre o passeio de pedras da minha casa, a moça cantarolava baixinho, não identifiquei a música, mas estavam felizes.

O sol já está bem alto, uma morna brisa sopra tentando refrescar o dia quente. A rua está nervosa e movimentada seus atores trafegam e interpretam seus roteiros. Identifico mais um dos muitos sons daquele cenario, como um grito intermitente, o atrito entre a madeira das rodas o carro de bois se arrasta lentamente pela agitada rua.

De repente, ouço outro som, um grito aflito.

- Saiiiiiiii da freeeente!

O garoto em uma velha bicicleta esbraveja avisando aos outros que estão agachados jogando gudes distraídos. Por um triz eles se safam. A bicicleta passou por minha porta a toda velocidade, dava para ver o medo expressado nos olhos do ciclista. A bicicleta estava sem freios.

Risos, gritos e conversas agora enchem o ambiente, são os estudantes passam em bandos em direção ao colégio fazendo muito barulho.

De repente outro som ecoa pela rua como um lamento dolorido e intermitente, o atrito da madeira das rodas de um carro de bois que se arrasta lentamente. É seu Miguel, de vez em quando ele vem a vila comprar mantimentos no armazém do seu Valentin.

Deixo a janela por um pequeno intervalo, os ponteiros do grande relógio repousam um sobre o outro no numeral XII. Meu estômago produz um som peculiar, hora do almoço. A Rua está mais silenciosa, a fome retira alguns atores do palco, preciso me preparar para as próximas cenas.

A rua entra numa espécie de calmaria em função da maioria dos atores se encontrarem reclusos saciando seus desejos estomacais, ou em uma preguiçosa cesta.

Nesse intervalo acontece algo unico, o palco é invadido por criaturas O ensurdecedor troar dos cascos batendo contra o chão de pedras, mistura-se aos mugidos e chifradas, o odor exalado é indelével, característico dos bovinos e do campo. A Rua estremece, as portas se fecham, os animais são ferozes e agressivos, ninguem ousaria a cruzar seu caminho naquele momento, boiada se espreme contra as paredes e arbustos sobre as calçadas, deixando a rua empoeirada, suja, encharcada de urina e salpicada de estrume. Seu destino é o curral de embarque da estação férrea. O momento me deixa tenso, mas uma espécie de transe me envolve que só posso dizer... é magico.

Quando tudo parece voltar ao normal, nuvens tempestuosas escurecem o céu, deixando o palco escurecido e acinzentado, os redemoinhos de poeira dançam endiabrados, nova cena se desenvolve com novos personagens. Relâmpagos e trovões bombardeiam inclementes a pequena rua. Açoitada pelo vento a enxurrada lava os paralelepípedos, carrega os resquícios da comoção e apaga a impressões do que o dia deixou.

Sinto a vizinhança da tarde, há quase um vazio, as poucas nuvens que restaram sobre a rua, deixam escapar entre suas frestas outro espetáculo vislumbrante...o por do sol.

Em posições opostas, os ponteiros do relógio revelam a proximidade da noite. Os últimos urubus ainda rondam la no alto, pássaros se aninham em suas árvores preferidas. O Sabiá que havia sumido com a tormenta, reaparece e se aconchega entre as folhas da mangueira. Preparo meu jantar, os barulhos humanos agora são quase sussurros, os grilos afinam seus instrumentos se preparando para mais uma jornada. O “silencio” agora tem outro significado. O cénario muda, os atores mudam, alguns deles perambulam pela noite, mas as criaturas noturnas se esgueiram sob o manto das sombras, agora presas e predadores atuam no palco da rua, assim segue o espetaculo. Cruel, amorosa, justa e injusta, fria, quente, alegre e triste, seu humor muda constantemente sua pérsonalidade é definida pelos seus atores e seus moradores.

A rua tem vida própria. Vou dormir boa noite!

Anselmo Pereira