Simão Bacamarte: corrupção e loucura
Há muitos anos o Dr. Simão Bacamarte retornou à terra natal de Itaguaí no interior do Estado de Rio de Janeiro, após intensos estudos na Europa. A missão do alienista agora era cuidar da saúde da alma de seus conterrâneos. Com os sentidos acurados pela abnegação douta percebeu logo nos primeiros contatos com os moradores que teria muito trabalho. A loucura - revelou ao amigo Soares - dono do boticário - "era até agora uma ilha perdida no oceano da razão: começo a suspeitar que é um continente". Com métodos e teorias revolucionárias, cataplasmas e ungüentos o alienista entrou na batalha pela razão como um guerreiro incansável. Internou e curou muitos dementes e seu trabalho foi devidamente reconhecido na sociedade civil e política. Mas é da natureza da ciência evoluir e novas teorias do alienista comprovaram que os loucos internados eram saudáveis e os que se consideravam saudáveis eram na verdade os verdadeiros loucos. Estas súbitas mudanças de inquilinos na Casa Verde - o primeiro orates de Itaguaí construído graças ao seu concurso - resultaram em insurgências dos itaguaienses culminando na famosa revolta dos Cangicas. Mas com sapiência e honestidade, Bacamarte apaziguou os revoltosos e a paz finalmente triunfou. De tão honesto e abnegado, não relutou em recolher à Casa Verde a própria esposa, D. Evarista, com o diagnóstico preciso de "mania suntuária", dado que ela, D. Evarista, passava horas na penteadeira em dúvida se usaria o colar de safira ou de granada. Certo dia os moradores de Itaguaí testemunharam assombrados o internamento voluntário do próprio alienista na Casa Verde, prova irrefutável, definitiva, de abnegação e honestidade.
O insigne e ocupadíssimo alienista me recebeu na sua casa em Itaguaí para uma breve entrevista. Encontrei-o de pé com o chambre damasco passeando na vasta sala que abrigava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua Majestade. Absorto em si, cotovelo esquerdo apoiado na mão direita e a mão esquerda segurando o queixo, parecia no auge da descoberta de uma nova teoria para a cura das patologias mentais. Ao me ver sorriu educado e indicou uma poltrona.
- Sente-se meu amigo, seja bem - vindo a esta humilde casa.
Fui direto ao assunto, o tempo de um insigne cientista é precioso.
- Gostaria em primeiro lugar, Dr. Bacamarte, que o Dr. descrevesse um panorama da loucura no Brasil.
- Pois não, tenho pesquisado muito o assunto e confesso que estou assombrado com os desvarios da razão em solo pátrio. Santo Agostinho e Kant conjecturaram sobre a possibilidade de uma república de diabretes ensandecidos... uma possibilidade... - e mergulhou o olhar no vazio.
Refiz a pergunta rompendo o silêncio especulativo.
- O Dr. elaborou uma tipologia dos dementes internados na Casa Verde, também chamada a "Bastilha da razão humana", arriscaria fazer tambem uma tipologia da nossa loucura contemporânea?
- Ah sim, ficou bem mais fácil identificar e enquadrar os alienados. Temos os casos flagrantes de insanidade que pipocam no cotidiano como o da Ministra e seu Jesus de árvores frutíferas; o Raspudin da Virgínia que contamina mentes brasileiras com terraplanismos e o tema monomaníaco da ameaça comunista... e este típico caso de mal estar na civilização a que foi acometido o ex-PGR que, por um triz, não liberou o instinto assassino e tornou público as loucas tiranias de sua intimidade.
Mas o que mais me preocupa, mon ami, é a loucura coletiva engendrada nas estruturas sociais, a política ao contrário que visa o particular e não o coletivo. Pela primeira vez percebemos no Brasil o ódio como o afeto central da política. A corrupção desenfreada e os privilégios no Estado são irracionais. Veja só, magistrado recebendo 140 mil réis - reais, corrigi - por mês é de uma insanidade absurda.
- E o que o Dr. Simão Bacamarte recomendaria para o estabelecimento da sanidade mental de nossa querida pátria?
- Pergunta difícil. Você sabe que eu e Brás Cubas, meu colega nesta vida imorredoura nas páginas do bruxo do Cosme Velho, dedicamos nossa existência a causas altruístas. Ele com o emplastro capaz de curar todos os males da melancólica humanidade e eu na busca do remédio universal para erradicar a loucura em Itaguai, no Brasil e no mundo. Não tivemos sucesso até o momento... até o momento...- e calou de repente, provavelmente inebriado por alguma idéia magnífica. Mas voltou a si e completou.
- Égalité, mon ami, Égalité é a chave que me pedes. Em um país tão desigual, numa sociedade tão inclinada não existe plano para assentar uma razão equilibrada.
Num gole esvaziei o licor de poejo, agradeci os sábios conselhos do alienista e sai pelas ruas de Itaguai mastigando a palavra - Égalité.