Talvez a forma apocalíptica e luminosa de auscultar a poesia não seja de cima, como de um aeroplano, mas de dentro, em escala molecular.
 
Nesse exato momento tenho a casa em reforma. Meus olhos percorrem as paredes como a buscar algo côncavo, como pérolas afundadas ou estações concentradas nos espelhos.
Precisei mover quase todas as plantas pra fora, e agora tudo o que se sobressai é uma candura fria, sem grutas ou jardins ferozes que agravem o sangue.
 
Desde muito, e nem sei quando tudo começou, passamos a nos consumir literalmente em caixas, arquiteturas retilíneas, coléricas e entenebrecidas. Nos privando dos luzeiros do céu e do ventre da terra - lugar de nascimento.
 
E nesse ponto divago por que a arquitetura, a ciência e o design ainda não comungaram das mesmas águas a trabalhar minuciosamente os elementos e a biodiversidade ?
 
Ah... Que mágico seria não mais construir casas e arranha-céus, mas cultivá-los ! Que incrível seria viver entre primaveras e luas desencadeadas, tudo em constante movimento e evolução, enflorando os casulos de fervorosa vida ! Depois deitarmo-nos sob a noite antiga, cobertos de um esplendor recém chegado, como um beijo por nascer no lábio ainda trêmulo de temor e alegria.
 
Quando pequena, gostava de subir em árvores e ficar nelas a descontar o tempo. Conviver com as formigas e os demais insetos não me incomodava, pelo contrário, a ausência de divisas, a multiplicidade das cores e a proliferação dos cantos era algo que me encantava, não por olhar do alto, mas por olhar de perto, de dentro. 
Ali, pelos olhos ígneos de criança, Deus me atacava de ternura !
 
Agora tenho a alma permeada ao jardim, e a roseira plantada em frente à casa invade uma das janelas da sala. Cinco rosas obscenas, acesas de um laranja quase fogo, comovem e perfumam o interior do meu pensamento.
Enfim, estou salva .

 






 
DENISE MATOS
Enviado por DENISE MATOS em 03/10/2019
Reeditado em 03/10/2019
Código do texto: T6760358
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