Vida de leitor
Ele já foi um tipo muito visto estirado em sofás, em ambientes cheios de sombra, silêncios e ácaros, mas hoje, com o avanço das metrópoles sobre as cidades, tem-se metamorfoseado. Não nos espantemos, nós, habitantes do asfalto, se, ao entrarmos em transporte coletivo, banheiro público, sessões sindicais avistarmos um leitor, essa espécie pouco verbosa e geralmente chata de homem, com um livro à mão ou a tiracolo, enfeitando nossas idas e vindas. Perdoemos-lhe a ausência de decoro, as gazeadas às aulas de etiqueta social, a surdez proposital, a inércia costumeira; deixemo-lo viver sua vida de leitor, essa vida das mais difíceis de serem vividas ultimamente.
Não é apenas a vida dos desempregados, dos serventes de pedreiros, dos limpadores de para-brisa, dos vendedores de picolé Caicó que enfrenta barreiras para viver; a vida de leitor não é menos sofrida nem menos penosa que suas conterrâneas, ainda que seja menos visível. Começa cedo, lá pelas madrugadas, provocando insônias, revelando hipóteses, longe do final do expediente. Às vezes encontra funcionário cioso, e a coisa agrava-se. Esses dias vi um de seus funcionários em ação: um eletricista da Equatorial Alagoas, com livro à mão, trepado em um poste, lendo o que me pareceu ser um manual de como se comportar em cima de um poste. Parei e olhei pormenorizadamente para o inusitado leitor, e me veio uma vontade doída de dizer-lhe: "Desça daí, Seu leitor. Acaso não sabe que ler nas alturas é perigoso?".
Mas, comovido pela cena inusitada, deixei-me levar pelo momento e permitir que aquele eletricista leitor (ou seria leitor eletricista?) continuasse sua atividade nas alturas, levando choque de leitura. Por que eu o incomodaria? Por acaso, não sei os sacrifícios a que um leitor se submete para encontrar, entre uma página e outra de seus livros preferidos, um mundo possível?
Leitor não nasceu estranho, tornou-se. Ainda menino e analfabeto, o mundo a seu redor era seu maior brinquedo: sentia as cores do céu, decifrava a língua das iguanas, dançava a dança das borboletas, conversava com árvores, dava piruetas invisíveis; mas a criança cresceu, alfabetizou-se no asfalto, aprendeu a somar, a falar a língua das cidades, a manusear teclados, a dar ou omitir troco, e os papéis inverteram-se: se antes fazia do mundo seu brinquedo, hoje, alfabetizada e adulta, é brinquedo do mundo. Por isso, quando um leitor abre um livro, principalmente em cima de um poste, não deixa de ser um ato libertário, tentativa de reencontrar a infância subtraída pela necessidade de produção e consumo no mundo das metrópoles e das infâncias compradas.
A vida de leitor é cara, de uma carestia não necessariamente pecuniária, mas temporal. Em vez de está gastando tempo vendo televisão, navegando na vastidão da rede, colecionando fofocas nas calçadas, utiliza sua cota de horas para abrir um livro. E então lá vai ele: abre um livro, começa a leitura e quando dar fé já perdeu o almoço, já são seis horas, o Uber já passou; nas livrarias, chega-se às prateleiras e compõe um prato enorme de livros, do qual, de antemão, sabe que não conseguirá dar conta, mas que lhe enche os olhos, pois leitor adora comer com os olhos.
Come também em pratos, mas é raro: o que leitor gosta mesmo é de comer, dormir, acordar nos livros. Geralmente leitor também é cinéfilo, filósofo, degustador de frustrações; se homem, inábil com mulheres, se mulher, inábil com homens; vê a estante crescer e lamenta não poder acompanhá-la; deixa os livros com os quais não compactua pela metade; gasta as raras folgas a procurar nas estantes das livrarias livros que ainda não leu; briga com o enredo, com a linguagem, com os trejeitos e personagens dos livros que lê; acha graça em histórias sem graça; dorme tarde e, não raro, sofre de insônia; gasta o dinheiro do sorvete em livros, e, finalmente, um dia leitor morre. Mas não sem antes deixar, se deus permitir, vários leitores no mundo, com os quais muito provavelmente um dia toparemos colorindo nossas idas e vindas.