VERDADES VERÍSSIMAS - PARTE III
O que ficou faltando (2):
Bom, LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO, cronista maior, 80 anos; se fosse casamento, seriam "bodas de cedro, nogueira ou carvalho". ELE é ouro, os dois amigos - o escritor e o homem - se dando muito bem, convívio de harmonia, divergências apenas entre o primeiro mais tempo ao computador e o segundo diante de um bom prato, porém ambos muito econômicos em palavras-gestos, fala-escrita, detestando a grandiloquência e o ênfase da linguagem enfeitada e da salsinha "supérfluo verde". Consta um VERÍSSIMO tímido, lacônico, silencioso. Sem jogar conversa fora em sovinice ou estilo, fica vendo, prestando atenção, inspirado para detalhadas crônicas antológicas. Lembrando MACHADO DE ASSIS, "catar o mínimo e o escondido". Criativo e inventor, a notícia de que "ovo não faz mal à saúde" gera obra-prima de 30 linhas, cobrando indenização sobre anos sem claras e gemas. Comum, diante de algo divertido na comédia da vida, dizer-se "Isso é coisa do Veríssimo", inventado por ele ou poderia ter sido, enriquecer o cotidiano. Nele, tudo é emoção, lirismo, drama, erudição, temperado pela autoironia, humor sem rancor: fino, generoso e irresistível. Misto de humorista engraçado-sério, leve-profundo. Insuperável criador de situações e tipos - Ed Mort, O analista de Bagé, Dora Avante, As Cobras, A velhinha de Taubaté... Também ELE doce criatura. Entre os dois, VERÍSSIMO e LUÍS FERNANDO, impossível escolher.
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HQ - "As Cobras" - Entrevistador ao grupo: "Se as eleições fossem ontem... em quem você teria votado e se arrependido?" ----- Duas cobras olhando para o céu. Uma grita: "Ei! Eu estou aqui!" Outra tenta contemporizar: "Não adianta, é um universo frio e indiferente. Tenta em inglês."
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ELE parou de desenhar "As Cobras" em 1997 - a dupla de répteis mais bem pensantes do planeta; em 2010, "As Cobras, antologia definitiva", edição caprichada de quase 200 páginas e 470 tirinhas de mais de 30 anos; desenhou mais de mil para os domingos e depois diárias, seleção para o livro feita com ajuda da filha FERNANDA. Traçado o mapa das buscas. Rastros. Nasceram na "Folha da Manhã", Porto Alegre, em plena ditadura militar, divertindo o público e com a delicada missão de passar o recado nas entrelinhas, o regime da época sem qualquer pudor no ato da censura em possível manifestação da mídia golpista. Desenho, melhor sorte que texto, humor gráfico tem conotação lúdica, infantil, aspecto menos ameaçador; assim, a trupe conseguiu serpentear livre-leve-solta entre tesouras cortantes. Tiras políticas não envelheceram, manter a piada sem perder o leitor, cobras no contexto de corrupção, tormento das eleições etc. Outras obsessões - fim do mundo, Deus, futebol, espaço - contempladas em separado; assim, preguiça para banho frio ou angústia diante do universo, mereceram blocos à parte, como o que abre o livro, "As cobras existencialistas". Cobras são fáceis de desenhar - "só o pescoço", autor se considera mau desenhista e acha que as primeiras erram horrorosas e muito mal ajambradas, mas que viraram xodó dos leitores assim que saíram do ovo. Em 1977, uma primeira antologia, "As Cobras e outros bichos", não as tornou 'blasées', já ultrapassadas as fronteiras gaúchas e curtidas no país inteiro, sempre gentis e perplexas, questionando o mundo e dividindo espaço com outros personagens inesquecíveis; perversas apenas com as minhocas, a quem espezinhavam sem piedade: "diferença entre minhoca e serpentina, esta pelo menos útil uma vez por ano", a minhocas sem amor próprio só restava suspirar. Mas aos 60 anos, 'não ficava' bem um senhor sexagenário desenhar cobrinhas; ressuscitadas em 2006, o lançamento de "Terra Magazine", mas logo se recolheram novamente ao silêncio.
ENTREVISTA SEM O ENTREVISTADO - De todos os personagens, qual o favorito ou o que gostava mais de desenhar? "As cobras recém-nascidas que saíam da casca e iam descobrindo onde tinham ido parar. Por via das dúvidas uma já chegou com um habeas-corpus preventivo." --- Qual a sensação de vê-las reunidas em antologia? Gosta do desenho, das ideias, das lembranças da época? "Infelizmente, as cobras originais não foram reunidas - eram horrorosas, mal desenhadas, ajambradas, depois mudaram com o tempo, foram ficando mais caprichadas, mais redondas. Tenho saudade de ter 20 anos a menos, mas não daquele Brasil." --- Seu e-mail antigo era cobras-alguma-coisa. "Não fui eu que escolhi o nome." --- Continua valendo que desenhar é mais conveniente que escrever, para preencher coluna do jornal? "Ninguém melhor do que o MILLÔR naquele quadrado do "JB". As Cobras eram na época em que se poda dizer mais com desenho que com texto, ludicamente, infantilmente, e era conveniente para driblar a censura, cobras não contestadoras, mas sempre passavam alguma coisa." --- A filosofia das Cobras é a negação ou o resumo do Pensamento Ocidental? "Na medida em que nos domina uma grande perplexidade, elas representam, sim, o Pensamento Ocidental, principalmente diante do Universo infinito, que não aceitam sem reclamar.
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LEIAM meu trabalho "Rápida aula sobre humor gráfico".
FONTES:
"O sentido da vida, segundo "As Cobras" - "Fico com os dois", crônica de ZUENIR VENTURA - Rio, jornal O GLOBO, 3/10/10 e 24/9/16.
(Segue.)