Sobre o leite derramado
Há tempos tenho pensado em parar de beber leite. Entre as causas dessa reflexão estão argumentos obscuros como "Somos a única espécie que, mesmo desmamados, continuamos a tomar leite" (e nem é o da nossa espécie!). Até aí tubo bem; a normalidade do Homem nem sempre é normal à Natureza. Porém, outro argumento, de natureza mais temorosa, indica que o leite faz mal à saúde e que— vejam a ironia— o glorificado benefício da quantidade de cálcio no leite não conta em nada, e que, ao contrário, o leite prejudicaria a absorção desse elemento. Mas também não me importo com esse argumento a ponto de banir o leite da minha vida, aliás, como diz minha mãe "Para morrer basta estar vivo", ou seja, se até viver é um perigo para saúde, não vai ser o leite um elemento neutro.
Porém amigos, hoje pela manhã, eis que o Destino— ou o acaso— me manda o seguinte argumento: estava eu com o café da manhã todo preparado, só faltava a velha combinação do café com leite; pus o leite no copo e... O QUÊ!? Vejo algo nadando fervorosamente no meu leite. Parecia o Michael Phelps, ou, para ser mais patriota, parecia o César Cielo. Fiquei um tempo observando o inseto, tentando distinguir sua espécie e, como já havia bebido metade da caixa de leite no dia anterior, ou seja, já havia bebido do líquido onde aquele inseto parecia nadar por um ouro olímpico, só pude pensar o pior— É A P**** DE UMA BARATA! Cocei a cabeça— momentos de angústia me fazem coçar a cabeça—; e se, por acaso, houvessem companheiras daquela suposta barata que eu houvesse ingerido no dia anterior?
"Let me see then, what thereat is, and this mystery explore" (procure a tradução e referência por si mesmo; ou não procure).
Tirei o inseto do copo com uma colher e coloquei na tampa branca da caixa de leite; observei; concluí: É uma formiga.
Eis um paradoxo: fiquei feliz por não ser uma barata; feliz e triste. Já não tinha motivo de ficar irado com aquilo, aliás, era só uma formiga e eu não só beberia o leite onde ela nadou, eu comeria a danada sem tempero! Eu já tinha até projetado em minha mente a indignação que deveria impregnar esse texto, a reclamação que faria à marca XXXX(como pode um leite ter marca?) e, quem sabe, até um processo. Sim, uma barata seria digna de um processo, mas uma formiga? É como já disse... sem tempero! Aliás, como-as o tempo todo; melhor, comemo-las o tempo todo. Existem, por lei, níveis aceitáveis de matérias estranhas em alimentos. O que seria matéria estranha em um pacote de arroz ou caixa de leite, por exemplo? Ora, tudo que não fosse arroz ou leite. "Calma" pode me falar um qualquer que saiba que fragmentos de moscas, baratas e formigas não são aceitos em nível algum. Ora, tenham mais fé na imoralidade e na torpeza humana para não serem ludibriados tão facilmente; dirigir bêbado também não é aceito por lei, e nem por isso... nem por isso. O fato é que um cidadão urbano, ao chegar aos trinta anos de vida, já deve ter comido o equivalente a pelo menos um filhote de rato, uma ou duas baratas e umas dezenas de formigas.
Voltando ao meu caso, digo-lhes que me senti tentado a beber o leite assim mesmo. Mas uma espécie de receio me tomou por completo, era como se ouvisse minha mãe falando ao meu lado "O que os olhos não veem, o coração não sente". Tudo bem, mas o que os olhos veem, sente o coração, assim como o que os olhos veem também deve sentir o estomago. Saber que ao almoçar arroz, feijão e frango, posso estar, na verdade, almoçando arroz, feijão, frango, resíduos de baratas e sei lá mais o quê; bom, isso é uma coisa, e eu nem me importaria, aliás, não me importo. Agora, ter no prato ao lado do frango uma patinha de barata, convenhamos que é outra coisa. Assim como é outra coisa quando, em vez de vir partículas de terra em seu feijão, vem uma pedrinha na qual você lasca o dente. Se não bebi o leite do copo e joguei fora o resto que tinha na caixa, foi porque se apossou de mim a presença inexorável do inseto; inteiro e vivo. Só de ver a formiga formigou-me o estomago. Tenho certeza que passaria mal o resto do dia, dar-me-ia aquele leite um nó nas entranhas, a formiga serviria de um placebo maléfico, onde, em vez de simular um remédio como geralmente fazem os placebos, simularia um transmissor de doenças e eu ficaria enfermo. Tolice? Talvez, mas não arrisquei.
No fim, o que deveria ser uma reclamação está mais para uma crônica. Não consigo sentir em mim a raiva que gostaria de ter—e que teria se fosse uma barata no lugar da formiga— para reclamar mais vigorosamente. Mas confesso que tive meu café da manhã arruinado por uma formiga e que isso me deixa chateado. E mais, já passa da hora do almoço e eu aqui terminando este texto onde, além de não ter reclamado, nem se quer cheguei à resposta que pensei que teria ao finalizá-lo. Afinal, beber leite ou não? Eis a questão.
Mais uma pequena observação. Voltei à cozinha e olhei a tampa onde estava a formiga; ratifico, ...onde estava a formiga. A danada estava viva. Quando a tirei do leite, depois de ter nadado por todo o copo, ela estava imóvel. Pensei que ela tinha morrido, mas estava enganado. Decerto ela está viva e anda pela minha cozinha. Sei que é prescindível contar esse detalhe já que, por mais cruel que pareça, — e que não se desminta, somente se através de
mentiras— a vida de uma formiga não nos importa nada.