Marcapasso e crença
Imagine a consciência de um ser vivo de outra espécie como as batidas do coração saudável... constantes, previsíveis, homogêneas, imperturbáveis. Sem dúvidas, reflexões ou questionamentos.
Agora, imagine um coração com disritmia cardíaca ou batimentos irregulares..
Se para o coração, isso não é um bom sinal, pra essa metáfora é a expressão de uma consciência avançada, mais íntima e sensível à realidade, ao tempo real, diluída de sua subjetividade.
Pense em outro coração que apresenta disritmia mas, então, sua "dona" vai em um médico espiritual e ele coloca um marcapasso chamado crença mitológica.
Pronto, cabô.
A sensibilidade aflorada ao mundo, a consciência despertando pra única realidade, volta a adormecer num oceano de certezas e crenças supostamente irrefutáveis que reconstituem sua perspectiva imperturbável. Aquela áspera sensação de estar totalmente exposto aos ventos frios da noite, das verdades absolutas, que força o calor dos sentimentos mais puros e fortes, dá lugar ao pensamento positivo de estar tudo certo, de pertencer à realeza divina, do universo girar em torno do próprio umbigo, de achar que um terreno no céu já está no papo, enfim, de desprezar a única realidade em que vive por uma fantasia gratificante. Sem mais sentir os tambores dos segundos, o coração, com a ajuda de um artifício, volta a bater daquele jeito que faz a gente esquecer que o mundo é agora.
A consciência do extraordinário ato de existir, no agora, de ser vida.. pela mitologia, é substituída por cantos de sereias que hipnotizam os indivíduos mais vulneráveis aos seus mundos de subjetividade dominante: conformados, convictos e alienados ao que não querem saber, desses fatos fundamentais que os desagradam, que os tornam inquietos, tristes e temerosos.