ESTÓRIAS CARIOCAS ACRONOLÓGICAS - PARTE XII
Origem da instituição carioca dos botequins pés-sujos? DNA nos embrionários armazéns centenários, cada vez mais raros... o RIO de outra época... poucos ainda resistem na função original, tendo como testemunha belas cristaleiras. ARMAZÉM SÃO THIAGO, inspirador do roteiro do articulista por casas que vendem/vendiam artigos de armazém - "secos e molhados", típica expressão portuguesa + bebidas alcoólicas e petiscos para a clientela predominantemente masculina. O próprio nome 'botequim", segundo o filólogo AURÉLIO, tio de todos nós, autoríssimo do popularíssimo compêndio 'pai-dos-burros'., veio do diminutivo de "botica" (botiquinha, botequim...), termo antigão ao tipo de comércio que reunia bar-farmácia-mercearia-quitanda num só local. No RIO DE JANEIRO da Belle Époque, recém-proclamada a República, a então capital "civilizava-se" sob o comando de PEREIRA PASSOS, prefeito, PAULO DE FRONTIN, 29 anos de idade, engenheiro 'milagroso' da "água em seis dias" (final do Segundo Reinado, verão/1888) e OSVALDO CRUZ, cientista, inspiração urbana na Paris de Haussmann, o artista demolidor - armazéns começando a separar atividades comerciais, movimento de uma nova racionalidade urbana, tipo ou-isto-ou-aquilo... pensamento em campanhas anti-álcool e na concorrência com novas formas de vendas, como distintos bares, cafés e adegas. Os armazéns de "secos e molhados" e outras sociedades familiares - leiterias, confeitarias e cafés - foram desaparecendo na proporção da cidade renovada; na atualidade, resistem discretos nos bairros, fornecedores de produtos variados. ----- Alguns clássicos sobreviventes mantiveram mobiliário e decoração original, mudança apenas no tipo de serviços adaptados aos novos tempos: segundo a prefeitura, 13 antigos no RIO. Quem sobrou de fechar as portas ou ficar irreconhecível, ainda conta a história da boemia carioca e preserva antigas formas de sociabilidade, identidade cultural particular da cidade. ----- No passado remoto, quitanda era o lugar das mulheres, botando em dia as novidades e arrematando cereais e frios a granel (quantidades geralmente menores, fora da embalagem e ainda não se pensava em prazo de validade) - hoje, crescente presença feminina sem divisão de espaço: fim dos machos em torno do balcão, mergulhados em cerveja-vinho-cachaça, falando de política, trabalho e... mulher. ----- Eram muitas compras a crédito, o famoso "caderninho" (passagem rápida no conto "A sociedade", de ALCÂNTARA MACHADO, a voz dos ítalo-paulistas), ´pagas mensalmente pelos fregueses 'habitués', livros de fiado, capas de couro, valendo como documentos autênticos de contabilidade, carimbo dos donos e assinatura dos clientes, ensinamento de pais a filhos (atual terceira geração), tudo organizado por um contador. Às ocultas, ainda devem existir confidenciais "caderninhos do pendura", mesmo em 2019, por que negar?
HOJE, EXCLUSIVAMENTE UM BAR ----- ARMAZÉM SÃO THIAGO, popular BAR DO GOMES, em Santa Teresa - atmosfera histórica, sensação de mercearia do fim do século XIX, centenário em julho/2019 - ambiência de peças-relíquias, antiguidades, como o relógio de pêndulo, balcão de mármore, geladeiras de madeira, cristaleiras, os tais caderninhos e fotos decoram o que é hoje um salão de bar com memórias de sua história. Hoje exclusivamente um bar - chope, variadas marcas de cerveja, embutidos e frios variados (picanha, mortadela, presunto e salames), também fartos sanduíches, queijos, azeitonas, tremoços e outros petiscos.
MEIO BAR, MEIO MERCEARIA ----- ARMAZÉM DO SENADO, fundado em 1907, exemplo arqueológico, esquina de Rua do Senado com avenida Gomes Freire - até recentemente vendia a granel, hoje produtos de mercearia no imenso salão do armazém, feijão-arroz-café, os "secos..." já embalados; comércio mais forte no bar, cervejas, cachaças e vinhos, inclusive importados, acompanhamento /nenhuma novidade.../ de frios-queijos-azeitonas-petiscos... Tal como SÃO THIAGO, vínculos fortes com a vizinhança do centro da cidade e sede de festejos do bairro, sobretudo o carnaval de rua. ----- ARMAZÉM CARDOSÃO, alto da Rua Cardoso Júnior, em Laranjeiras, centenário imóvel tombado - no empório, alimentos e produtos de limpeza; também bebida e comida caseira, sendo a feijoada de sábados e domingos o prato mais famoso. Igual vinculo com o bairro e o clima de proximidade: ligação com rodas de sambas e chorinhos, forró quinzenal, jam sessions de jazz e bossa nova, e música eletrônica. ----- BAR DO SEU ZÉ, também chamado BAR BRITAN, brincadeira com os sobrenomes de Seu Zé, Brito e Anselmo, botica na subida para o Outeiro da Glória - ares de RIO antigo, possível cenário para filme de época - poucas opções no cardápio sempre de boa qualidade, cerveja, porções de linguiça calabresa, sanduíches e cerveja gelada. Mesma ligação com a vizinhança. ----- CASA PALADINO, de 1906, no centro da cidade - suntuosas cristaleiras e estantes com produtos finos e delicatessen de importação. Dois ambientes, nos fundos o bar com chope cremoso e privacidade, ainda sanduíches com generosos recheios e requintadas omeletes, como a de salmão defumado. ----- CASA VILLARINO, de 1953, na Rua Calógeras, centro da cidade, placa indicando 'líquidos e comestíveis' - super caçula do grupo, mas também com relativo peso histórico, graças a uma clientela formada por uma plèiade de ilustres fregueses (MANUEL BANDEIRA, DI CAVALCANTI, PAULO MENDES CAMPOS, VILLA-LOBOS, LYGIA CLARK E CARLOS LYRA) --- no salão, TOM JOBIM conheceu e iniciou parcerria com VÍNÍCIUS DE MORAES, retrato da união na partitura original de "Orfeu da Conceição", emoldurada na parede e assinada pelos autores, mudando para sempre os rumos da MPB - abre para almoço e funciona como uisqueria na happy hour, horário de destilados, cervejas, frios e queijos - clientela fiel de executivos, imortais da ABL e advogados, mesinhas na calçada para a nova geração de boêmios.
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LEIAM meu trabalho "Velharias... ou tradições?" - Parte VI.
FONTE:
"Os pais dos botequins - pérolas escondidas da boemia", artigo de PAULO MARTINS DE MELLO, craque no assunto - Rio, suplemento Rioshow, jornal O GLOBO, 26/7/19.
F I M