Bola de papelão
Se no meio de meu caminho há uma pedra, um carro, um poste, eu não lhes atrapalho a passagem: desvio e sigo meu itinerário. Mas eu me pergunto por que o mesmo não se dá quando o obstáculo à minha frente é uma caixa de papelão. Por que, meus deus, não resisto à tentação e lhe atiro, não um tiro de Taurus, mas sim um pontapé? Poxa, nessas horas é que eu vejo como sou mal. Que essas caixas de papelão que enfeitam as ruas de nossas cidades me fizeram de desfeita para eu as odiar tanto? Por que eu lhes nego o direito de habitar o asfalto e as calçadas? Por que lhes violo esse direito que certamente elas têm assegurado em algum código, eu não sei.
De onde vem esse meu fascínio por chutar caixas de papelão, desconheço. É possivel que nem Freud, nem ele, saiba explicar a raiz dessa minha avaria moral. Eu mesmo só dei conta dessa mania ultimamente, embora já a praticasse regularmente, mas não conscientemente. Ao avistar uma caixa de papelão à calçada ou à rua, sem pedir licença, desde muito tempo interrompo conversa com amigos e desconhecidos e vou lá, meio sonambulando, meio no automático, dar aquele pontapé na dita cuja. Esses dias, porém, uma senhora muito civilizava me despertou a atenção para esse mal costume. Fazia uma caminhada em rua aberta e, ao ver sobre uma calçada uma atraente caixa de papelão, aproximei-me e lhe saudei com um pontapé. Toda queixosa, ela voou a aproximados dois metros de distância e, em seguida, uma voz delicada e inquisidora veio ao encontro de meus ouvidos: "Rapaz, você é maluco, é?"
Era a senhora civilizada que mencionei, de sua janela, entreaberta para a vida das ruas, querendo saber se eu era louco ou apenas aparentava ser. Mas isso eu não soube lhe responder, tampouco, mesmo que ela não tenha perguntado, de onde vem minha atração por chutar caixas de papelão em espaços públicos. Será que minha infância crescida nos terreiros de terra batida da zona rural de Novo Lino e, mais tarde, sobre os paralelepípedos envernizados de União dos Palmares tem relação com essa inclinação? Aliás, inclinação ou perversão? Porque não me parece muito sadio um cidadão de posse de seus direitos políticos e civis sair, a torto e a direito, chutando inofensivas caixas de papelão que encontra pelo caminho. Quer dizer, inofensivas, inofensivas mesmo todas nem tanto, que de quando em quando encontro uma revoltada e municiada de tijolos, cimento ou excrementos outros.
Essas nuanças, porém, não abonam a atitude reprovável própria de bípedes de sair em plena luz do dia e a olhos vistos golpeando com os pés caixas de papelão que encontra obstruindo seu nariz, ainda que esse bípede seja aparentemente de tino, de feições idiossincráticas destacáveis, predicados esses que claramente não me dizem respeito. Mas enfim, o caso é grave e requer medidas enérgicas, como manda o clichê. É recomendável, entretanto, que me abstenha de entrar nesse mérito, isto é, no de recomendar o que ou não se deve fazer com os infratores do mundo civilizado enquadrados como chutadores de caixas de papelão, porque o que busco aqui, e até o momento não encontrei, é descobrir de onde vem essa minha tara por chutar caixas de papelão.
Não creio que esse defeito seja advindo de minha infância, pois, que eu lembre, das vezes em que me aventurei no futebol, sempre fui péssimo lateral esquerdo e ruim de mira. Apesar de proceder conforme as recomendações dos futebolistas para o bom desenvolvimento dessa arte de correr atrás de uma bola, não fui bem-sucedido. Antes das peladas com a galera da infância e, mais tarde, da "indolescência", comia bananas para prevenir as câimbras; alongava-me; praticava com amigos desconhecidos para tornar o processo mais produtivo, mas o resultado não deu bom. Fracassei na difícil arte de acerta bola e fui bem-sucedido na de desmantelar canelas. De modo que não consigo desvendar o mistério: de onde terá vindo esse meu fascínio por chutar caixas de papelão? Talvez Beatriz da Bahia e seus Búzios milagrosos tenham a resposta.