Crônicas Médicas - Simples assim
Quando ingressamos no curso de medicina, muito do que se chama simplicidade se afasta de nossos olhos e, conforme os semestres passam e a realidade profissional se aproxima, muitos de nós mergulham na luxúria e vivem pelo dinheiro que a profissão, inevitavelmente, traz. Infelizmente, muitos chegam humanos à faculdade e se formam endinheirados.
Era vinte e três de agosto, sol escaldante e cenário caótico, apesar do lindo céu azul. A grama verde se estendia por pouco mais que alguns metros, onde, então, dava lugar aos pedregulhos e à terra amassada que cobria aquilo que, ali, chamavam de rua. Protegendo os olhos da luz que nos cegava, assistíamos, espantados, a uma das piores cenas que vi em toda minha vida: na linda região dos pampas gaúchos, montanhas de lixo se projetavam do chão como vulcões em erupção, derramando, em vez de lava, a escuridão do chorume sobre aquela comunidade. Uma vez mais, a miséria do Lixão me ensinava duras lições que os letrados professores da faculdade não conseguiam nos passar na íntegra. Tomamos fôlego e caminhamos em direção à primeira casa que visitaríamos aquela tarde.
Era tão chocante o contraste entre nós, sete alunos de medicina e duas enfermeiras, e a situação à nossa frente que era inevitável perceber os olhares curiosos de toda e qualquer pessoa que passava por nós enquanto caminhávamos, um tanto hesitantes. Alguns cumprimentavam quando olhávamos de volta; outros escondiam-se em seus casebres – imagino que oprimidos por nossa simples presença. Paramos, então, em frente ao primeiro barracão que imaginamos ser uma casa e batemos palma.
Depois de mais ou menos um minuto esperando, sem respostas, decidimos tocar em frente para a próxima casa. “Ei, boa tarde”, chamou uma voz vinda de algum lugar ao fundo do terreno. “Esperem um pouco”.
Voltamos os olhos para a direção da voz e, detrás do barraco, pisando com cuidado em meio ao mato alto e a algumas tábuas, um senhor de barba branca e camiseta azul desbotada surgia, caminhando com certa dificuldade. “Boa tarde”, respondeu nossa professora. “Tudo bem com o senhor?”
Antes que ele pudesse responder, com sua empolgação fora do comum e voz estridente, a professora S. se pôs, quase que aos berros, a explicar: “Estes aqui são alunos de medicina da Unipampa e nós duas somos enfermeiras, ali da ESF. Podemos conversar um pouquinho com o senhor?”
“Mas é claro”, respondeu o velho, esboçando um tímido sorriso por debaixo do emaranhado de fios brancos que lhe cobria o rosto. “Querem entrar? Só não tem cadeiras para todo mundo”.
“Não se preocupe”, dissemos enquanto atravessávamos a cerca e parávamos em frente ao puxadinho feito de madeira. “Ficamos aqui fora mesmo. Vai ser rapidinho”.
Antes de continuar, gostaria de frisar que, de fato, foi rápido, mas poucas coisas me marcaram como aqueles minutos ali passados. Não foi um tempo gasto, mas, sim, uma lembrança ganha.
“Qual o nome do senhor?”
“Meu nome é M.”, e completou com o sobrenome que, infelizmente, não me recordo.
“O senhor mora por aqui faz tempo?”
“Oi?” Aparentemente, o senhor M. tinha um leve problema de audição, mas nada significativo, especialmente se comparado ao que estava por vir.
“Faz tempo que você mora aqui no Lixão?”
“Ah, não, não! Cheguei anteontem aqui”, respondeu. Em um tom um pouco mais animado, continuou. “Inclusive, tô com umas ideias de erguer uma casinha ali na frente. É nosso sonho. Já tenho todo o material aqui. Vai ficar bom”.
“É mesmo? Que legal! E por que o senhor decidiu se mudar para cá?”
“Então, eu morava na cidade, mas era muito estresse para mim e minha esposa. A gente gosta mais da calmaria, sabe? Aí, ouvimos falar daqui e decidimos vir. Parece bom, bem tranquilo. Tem muito o que melhorar, mas, pra gente, tá bom assim. Inclusive, hoje, minha mulher saiu cedinho para buscar umas coisas que estavam faltando e só volta no domingo. Vou ficar o fim de semana todo sozinho por aqui, botando ordem no lugar”.
‘Bem interessante’, pensei comigo mesmo. ‘Cheguei aqui pensando que as pessoas lutavam para sair, mas, logo na primeira casa, encontro alguém que fez questão de se mudar para cá’.
“E qual a idade do senhor, senhor M.?” Perguntou a professora, dando prosseguimento na conversa.
“Duvido você adivinhar”, desafiou o senhor M., dando um olhar travesso em direção à professora. Naquele momento, percebi alguns detalhes nos quais não havia reparado antes. Por trás da barba longa e branca, lembrando-me Papai Noel, um rosto, quase vermelho de tão branco que era, escondia toda uma história. Rugas marcavam o entorno de seus olhos, mostrando-nos uma vida dura de alguém que, muito provavelmente, trabalhara diariamente sob o sol.
“Setenta e quatro”, respondeu a professora depois de pensar um pouco.
“Hoje, estou completando setenta e cinco anos de muita saúde”, disse o senhor M. todo orgulhoso, estufando o peito.
“Não creio”, respondemos todos e começamos a cantar Parabéns pra você.
É engraçado como, independentemente da idade, não sabemos reagir quando outras pessoas cantam parabéns para nós. Não consigo me imaginar no lugar daquele senhor naquele momento: setenta e cinco anos, o que não é pouca coisa, mudando-se recentemente para um dos lugares mais miseráveis e desestruturados de toda a cidade e, provavelmente, de todo o Brasil, e solitário, já que sua esposa estava ausente e seus laços ainda não eram fortes ali dentro da comunidade.
Nem mesmo isso, no entanto, impedia aquele homem de sonhar. Mesmo em meio a toda aquela pobreza, rodeado por vulcões de chorume, os sonhos daquele casal borbulhavam mais forte que qualquer montanha de lixo que tentasse roubar a cena. Eram novos ali, mas eram experientes na vida. Sabiam como contornar os desafios e ainda encontravam forças para planejar um futuro em um lugar onde passado e presente apontavam para a possibilidade de não haver um depois.
Ao ver aquele olhar, azul como o céu daquela tarde, brilhar como, provavelmente não brilhava há algum tempo, eu percebi que, em uma terra de ninguém, sentir-se reconhecido como indivíduo faz toda a diferença. Em contraste com a terra seca que nos cercava, gotas de emoção caíam levemente dos olhos daquele senhor, regando aqueles fios brancos de barba, dizendo para todos que assistiam àquela cena: não se esqueçam que, apesar de todo o glamour da profissão, o maior bem que nos é apresentado não deve vir em forma de cifras no final do mês, mas, sim, na simplicidade de um sorriso sincero de cada alma curada por nós.