DOIS EM UM

O que fascina, em nós, ou em muitos de nós, humanos, é a versatilidade excepcional com a qual alguns se ajustam capciosamente às situações que lhes são convenientes. No espelho da realidade, refletem imagens difusas com tantos traços falseados de uma personalidade multifacetada que se ajusta, sem parcimônia, às situações ou circunstâncias, como se fossem seres providos de couraças tantas para camuflarem suas próprias verdades, conforme suas conveniências. Criaturas excepcionais que, possivelmente, não se enquadrariam no tripé de toda a base da Teoria Freudiana.

Por vezes, alguns desses exemplares da raça humana nos fazem crer que possuem dois eus. Um, fugidio, devasso, vulnerável, dotado de comportamentos estereotipados, adapta-se às circunstâncias e/ou conveniências que lhe bem convier. Um outro eu recluso, resguardado, refém nos grilhões dos intrínsecos desejos, cerceado no arcabouço da alma.

Naturalmente as ciências humanas, especificamente a Psicologia, não dispõem de argumentos consistentes que justifiquem a pluralidade de tantas farsas em muitos representantes do único ser vivente dotado de inteligência, muito menos dispõem de técnicas que permitam “mergulhos” ao âmago da verdadeira essência deste ser. No entanto, em muitos de nós não é tão difícil observarmos ou sentirmos o aflorar de personalidades multifacetadas, através de atos, de atitudes, de pensamentos, de comportamentos.

-“ ...Eu gostei tanto, tanto quando me contaram, que tive mesmo que fazer esforço para ninguém notar”. Trata-se de um dos versos de um consagrado compositor brasileiro, onde o autor, relata o prazer que sentiu ao saber da decadência moral da amada infiel. Além do sentimento de vingança, bem cristalino nos seus versos, fica patente também o conflito dos dois eus. Um eu verdadeiro, representado pelo prazer de sentir-se vingado; o outro, o farsante, que fazia esforço para ninguém notar, ora travestido no disfarce da conveniência naquele momento, embrenhado nos recantos mais insólitos da alma, onde ele, somente ele, o compositor, dispunha de livre e pleno acesso.

Não creio, embora sem maior embasamento, que essa dualidade seja inerente à natureza humana, ou melhor, que o falso sempre se enalteça ou esteja sempre a descompensar a verdadeira essência em nós. Seria perigosíssimo generalizar, principalmente quando sabemos da existência de criaturas excepcionais, consagradas pela História, e outras tantas comuns, que estão inseridas no nosso dia a dia, que dignificam essa essência sublime na natureza humana, ao mostrarem traços límpidos de uma personalidade solidificada nos alicerces da razão, da consistência do pensar e agir.

Entretanto, não há como não se estarrecer com alguns exemplares do único ser dotado de inteligência, do único ser dotado dessa capacidade cognitiva. Quantos, motivados por interesses circunstanciais, na platéia da subserviência aplaudem espetáculos bufos, por pura e tão somente conveniências, mesmo que para esses aplausos tão febris tenham que mesquinhar a própria racionalidade; quantos, no palco espetacular da hipocrisia, sem quaisquer constrangimentos fazem jorrar lágrimas forçadas, que não lhes saem puras, do cerne do coração; quantos com requintes de moralidade ilibada, com sermões ridículos de auto-afirmação, apregoam aos filhos princípios de dignidade, mas nem se apercebem que ao longo de suas vidas sempre foram hábeis e astutos em atropelarem todos os padrões de ética, moral e pessoal.

As evidências mostram-nos a ânsia das ciências em esmiuçar o âmago desse animal confuso, em se alcançar essa câmera registradora, em ver o espelho límpido que retém a imagem cristalina do que somos, enfim, em lançar mão nessa caixa preta que existe em cada um de nós.

Não somos os únicos seres providos de tantas couraças. Há tantos outros que utilizam-nas, mas por imposição da própria lei da sobrevivência, irracionalmente, portanto. Porém, há algo mais irracional, ignóbil e bruto do que o “humano” que alicia sua consciência; que vilipendia suas convicções; que falseia e molda suas verdades; que faz uso das couraças, tão deprimentes; que põe sempre em “desequilíbrio” os seus eus? Enfim, há algo mais irracional do que o humano que se falseia, que não prima pela originalidade, que se aniquila, como gente?

Eduardo Conde

Eduardo Conde
Enviado por Eduardo Conde em 17/09/2019
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