sobre invisibilidade e superação

Vivo adiando encontros, essa é a grande verdade. Não me refiro apenas aos convites que invariavelmente recebo para rever familiares e amigos. Refiro-me, principalmente, ao encontro com a escrita.

Segundo manuais de redação, "é necessário deixar as palavras fluírem, deixá-las vir do lugar mais profundo de nossa existência e, assim, aliviar a alma". Não gosto muito de manuais, mas devo concordar que as borboletas que voam insistentemente em meu estômago só alcançarão horizontes mais distantes quando eu parar de conjugar o verbo procrastinar.

Sendo assim, a narrativa que transcrevo nas linhas abaixo nasceu fruto de muita observação. E tempo. Queria eu que fosse apenas uma ficção, dessas que nós inventamos para amenizar a dor do outro. Dessas em que escolhemos o protagonista de nosso enredo e, conscientemente, mudamos o desfecho. Mas não é. É uma história de dor. É uma história, principalmente, de amor. "A dor do outro é sempre mais linda do que a nossa", alertava-me Geruza, mestra em domar as palavras e encadeá-las no papel.

Na intersecção entre as avenidas Carlos Caldeira Filho e Giovanni Gronchi, na zona sul da cidade de São Paulo, há um fluxo considerável de veículos. Dos tipos mais variados, desde populares a importados, caindo aos pedaços ou novinhos em folha, passam apressados os veículos rumos aos seus destinos.

Foi exatamente naquela esquina, que encontrei uma senhora. Portava um cartaz indicando um novo empreendimento que estava sendo erguido a poucos metros daquele local. Agora, pensando bem, creio que foi ela quem me encontrou, pois eu estava perdido em pensamentos. Em minha mente, palavras da música "Levanta e anda", do cantor Emicida, pululavam. "- Irmão, você não percebeu que você /é o único representante do seu sonho na face da Terra? Se isso não fizer você correr, chapa/ Eu não sei o que vai".

Dei um pause na música que tocava em minha mente. Aproveitei o semáforo fechado e, curiosamente, perguntei àquela senhora se estava precisando de alguma coisa. Disse-me, ressabiada, que não precisava de nada. Aproveitei a oportunidade para beber um pouco de água, oferecendo-lhe uma garrafa que havia comprado há pouco e que ainda estava intacta.

Ela, ainda desconfiada, aceitou minha oferta. Em alguns meses do ano, as temperaturas na capital paulistana oscilam e atingem níveis bem elevados, intensificadas pelo ar seco e pela baixa umidade. Quis devolver, mas eu pedi a ela que guardasse em um local protegido do sol para beber o restante em outra ocasião.

- Seu nome?, perguntei, buscando saber um pouco de sua história.

- "Carolina", respondeu-me.

- Desculpe a pergunta, mas por que a senhora está trabalhando debaixo de um sol desses?

- "Preciso alimentar meu neto, moço. Minha filha morreu 'fazem' dois anos e deixou seu filho comigo. Ela tinha só dezoito anos e um futuro inteiro pela frente...ela engravidou de um rapazinho que prometeu de tudo pra ela, mas que..."

- Mas a senhora não tem outra fonte de renda? Não é aposentada?

- "Trabalhei durante poucos anos registrada, seu moço. Quando cheguei em São Paulo, as madame não registrava qualquer uma. O pouco de dinheiro que juntei, comprei um barraco lá no Jardim Ângela, perto da Padaria "Minininha". Lá, conheci o inferno e o céu. Inferno foi o momento em que comecei a me relacionar com o Ladislau, homem rude e sem serventia alguma. Bebia muito. E me batia quando chegava em casa e não encontrava nada para comer. Dizia que eu era 'coisa-ruim', 'que não prestava pra nada'. Só me dava os parabéns quando eu chegava com o pouco de dinheiro que ganhava de minhas diárias como doméstica.

Ou quando queria, passada a bebedeira, me procurar para satisfazer suas vontades. Eu, tola que só, aceitava. E assim vivi quinze anos de minha vida. Dessa relação conturbada, tive a Leia".

"- Moça bonita, você precisava ver só. Apesar das condições precárias, sempre procurei dar o melhor pra minha filha. É claro que muitas vezes, a comida era insuficiente e as roupas ficavam um pouco apertadas. Mas ainda assim, íamos enfrentando a vida.

- Certo dia, recebi a notícia que me deixou completamente sem chão. Ladislau, depois de um dia inteiro de bebedeira, acabou sofrendo um acidente e se ferindo mortalmente. Na favela, o bebum tem um monte de amigo, mas na hora do aperto, sobra tudo pra família do falecido. Cova rasa no Jardim São Luís, foi a única solução que encontrei. O dinheiro, minguado, mal dava para pagar as despesa de casa, imagina só se eu poderia me dar ao luxo de comprar um caixão todo envernizado...Foi-se embora, o traste. Me deixou ao menos uma joia que eu fazia de tudo, de tudo".

"- Mas a vida da gente é feita de estradas longas e cheias de obstáculos. Quando a gente supera um, vem logo outro e mais outro, como se fosse um filme repetido muitas vezes em um cinema barato. A gente já sabe o final, mas mesmo assim se senta e começa tudo de novo..."

"- Minha filha estava prestes a completar dezessete anos quando engravidou. Apesar de todo o cuidado que tive com ela, não consegui controlar suas idas aos bailes que tinha perto de casa. Lá, ela conheceu o Maurinho, um 'minino de ouro'. Trabalhava em uma empresa de ônibus como cobrador, 'istudado', 'quiria' fazer faculdade assim que arrumasse um tempo. Prometeu o mundo pra minha filha e, com isso, conseguiu convencê-la a ir pra cama. Eu bem que "disconfiei" da mudança de comportamento dela, mas não acreditava que ela ia ser mãe tão cedo.

"- Mi enganei. Nove meses depois, lá estava eu, com duas crianças em casa. Antes de meu neto nascer, o Maurinho sumiu, desapareceu. Ouvi dizer que a família havia se mudado pro Pernambuco. O povo fala muito, sabe? Eu 'quiria' que ele apenas assumisse a paternidade, registrasse a criança. Não 'quiria' ver ela crescer sem pai..."

"- Mas o pior estava por vir..."

"- Depois da gravidez e do nascimento do meu neto, minha filha, minha única filha, o presente que Deus me deu, foi-se embora dessa vida. Ela começou a passar mal, muito mal. A gente foi no médico e, ouça bem, ele receitou um remédio para o estômago. 'Num pediu exame, num pediu nada..' Só nos dois últimos dias de vida foi que a gente descobriu o verdadeiro motivo de sua doença. Era um tipo de câncer raro, na placenta. O outro médico, em outro hospital, escreveu o nome pra mim nesse pedaço de papel:

"- coriocarcinoma", era a inscrição no papel, em letras de fôrma.

"- Morreu meu tesouro, minha joia. E me deixou só. Nem um último abraço eu consegui dar. Naquele dia, eu precisei deixar o hospital por alguns instantes para conseguir esse emprego. E por isso hoje estou aqui, enfrentando esse sol, na batalha para conseguir dinheiro para comprar leite, fralda e comida para meu neto".

"- Sabe, às vezes me pego cantando baixinho aquela música 'não sei por que você se foi, quantas saudades eu senti...e de tristezas vou vivendo, aquele adeus, não pude dar...'

"- Se eu encontrasse uma lâmpada com um gênio dentro, o pedido que eu faria seria ver minha filha de novo e dar um abraço bem apertado nela...mas a vida, sem freio, vai passando depressa diante de nossas vistas".

" - Eu contei tudo isso pra você, mas não quero que sinta pena de mim. Aliás, eu agradeço sua atenção: são poucas as pessoas que param e perguntam se eu estou bem, se preciso de alguma coisa. Agora vou me posicionar aqui, pois meu chefe está vindo ali, do outro lado da rua..."

Ouvi tudo e registrei em minha memória sua história. Ofereci-lhe ainda algumas notas que tinha na carteira, mas Carolina declinou da oferta. Num olhar afetuoso, sorriu-me encabulada e posicionou o cartaz conforme orientação de seu superior.

Por alguns instantes, lembrei-me de Carolina Maria de Jesus, escritora que viveu grande parte de sua vida à margem em nossa sociedade, catando papel para cuidar dos três filhos.

Carolina foi descoberta por um jovem jornalista que, indicado para descrever a vida dos favelados do Canindé, deparou-se com uma mulher negra vociferando contra outros moradores que a incomodavam, dizendo que "eles seriam personagens de seu livro".

O jornalista, Audálio Dantas, teve acesso aos manuscritos de Carolina e, alguns meses depois, surgiu o livro "Quarto de despejo", traduzido em treze idiomas diferentes, despertando a curiosidade de alguns países da Europa.

Em seu diário, um exemplo de vida e de superação, principalmente quando Carolina Maria de Jesus fala sobre a fome:

"22 de junho... Saí triste porque não tinha nada em casa pra comer. Olhei o céu. Graças a Deus não vai chover. Hoje é segunda feira. Tem muitos papeis nas ruas. No ponto do bonde, eu me separei de Vera.

Ela disse:- Faz comida, que eu vou chegar com fome. A frase comida ficou ecolodindo dentro do meu cérebro.

Parece que o meu pensamento repetia: Comida! Comida! Comida!"

“Oh São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela... o dinheiro não deu para comprar carne, eu fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede:

- Mamãe, vende eu pra dona Julita, porque lá tem comida gostosa.”

O semáforo tornou a abrir. Consegui convencê-la a aceitar aquela quantia e, assim que possível, eu retornaria com fraldas e leite para a criança. Ela me agradeceu pelo dinheiro e pelo tempo que ali permaneci. Deu algumas recomendações, "que eu tomasse cuidado com os carros que passavam feito louco por aquele avenida naquela hora do dia".

Despedi-me com um verso do Sérgio Vaz, poeta da periferia que muito estimo: "Não confunda briga com luta. Briga tem hora certa pra acabar, a luta é para uma vida inteira".

É isso. Nas esquinas da vida, a gente sempre encontra muito mais do que um simples alguém que empunha uma placa de um empreendimento. Difícil mesmo é enxergar essas pessoas.

Otávio di Sábatto
Enviado por Otávio di Sábatto em 16/09/2019
Reeditado em 16/09/2019
Código do texto: T6745985
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