dos encontros inesperados
Duas e meia da tarde de uma quinta-feira de setembro, dia de extremo calor com temperaturas acima da casa dos 35*C, muito incomum para o inverno.
Como de costume, seguia muito devagar com minha bicicleta pelas ruas esburacadas próximo ao colégio onde trabalho, no bairro do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo.
Ninguém nas ruas. "Poucas pessoas se aventuram a sair em dias assim", pensava eu.
Eis que um pouco mais a frente, um senhor se debruçava sobre a caçamba de lixo à procura de alguma coisa para levar para o ferro-velho. "Ou à procura de algo para comer", concluí.
Mas além da busca por algo em meio ao lixo, ele cantava de forma tão imponente uma moda de viola. A canção relatava a trajetória de um caipira que vê as transformações do tempo acabar com o reino encantado onde ele morava.
"Eu nasci num recanto feliz
Bem distante da povoação
Foi ali que eu vivi muitos anos
Com papai mamãe e os irmãos
Nossa casa era uma casa grande
Na encosta de um espigão
Um cercado pra guardar bezerro
E ao lado um grande mangueirão
No quintal tinha um forno de lenha
E um pomar onde as aves cantava
Um coberto pra guardar o pilão".
Apesar do corpo sentir a exaustão dos dias, reduzi ainda mais o ritmo e aproveitei a ocasião para me hidratar. Mas queria mesmo era entender como é que alguém, sob condições climáticas e sociais tão adversas pudesse cantar.
"Qual sua graça?", indaguei.
"Francisco, ao seu dispor".
"O nome do meu avô", respondi ligeiro. "O senhor mora aqui perto?"
"Moro perto do Jardim Caiçara há mais de vinte anos".
"De onde o senhor encontra tanta disposição para cantar com uma alegria dessas, mesmo debaixo desse sol abrasador?"
"Minha inspiração é a vida, meu filho. Passei seis meses internado e os médicos chegaram a formular meu atestado de óbito. Mas por um milagre, aqui estou eu. Em virtude da minha idade um pouco avançada, não consigo mais emprego registrado. Por isso, vivo de forma muito humilde com o que recolho nas ruas. Não é muito, mas consigo me alimentar".
Agradeci a cantoria e lhe ofereci uma garrafa de água reserva que sempre carrego comigo. Ele aceitou e a bebeu ali mesmo.
Eu retomei minha viagem de retorno ao meu destino com mais essa lição na bagagem: "a vida é batalha, desafio". No pensamento, uma ideia fixa se instalou e me fez refletir sobre como a vida é uma caixinha de surpresa: simples detalhes do cotidiano podem nos proporcionar histórias incríveis.