Um cão cercado de povo

De repente assim, sem mais nem menos, eles foram seduzidos pelo cão. Há já um tempo que o cão circula por entre uma massa cada vez menor de adoradores, os que ainda mantem alguma fé nos latidos salivantes. Outra margem, desiludida, agora afasta o corpo para não ser mordido. Mais a diante, há uma multidão de pessoas desnorteadas. Não entenderam nem o porquê nem como aconteceu. Elas alertaram para o perigo do cão, mostraram seu comportamento retrógrado, doentio e imprevisível, mas ninguém as ouviu, talvez por causa da distância ou da voz abafada naquele momento. Aí fica a dúvida. Quem alimenta o cão que nunca se sacia? O que ele come que o envenena? Qual a razão de tanta raiva, de tanta ofensa? Um cão que, de tanto detestar certa cor, nem sangrou quando ferido.

Talvez não devêssemos estudar o escolhido, já que ele é o que é. Talvez devêssemos analisar quem o escolheu.

Anos atrás avançávamos em tantas áreas que parecia que o mundo logo sentiria inveja. Estudos científicos em áreas diversas não só na medicina ganhavam destaques. Ganhávamos inclusive campeonatos de robôs sem nem termos laboratórios sofisticados em robótica como em países asiáticos ou norte-americanos, quem dirá os altos investimentos. Começamos a respeitar as minorias e a punir quem não o fizesse. Passamos a cobrar mais sobre questões de violência de todos os lados. Almejávamos um futuro diferente, sem pobreza, com escola para todos, empregos nas metrópoles e no campo, mais oportunidades e iguais para homens e mulheres. Estávamos num caminho tortuoso, porém direcionado. Bastava manter o rumo e cuidar para que as mudanças mostrassem resultados; certificar que melhorias e avanços fossem garantidos pelos demais representantes do povo, quaisquer que fossem. Mas essa fase passou.

O cão veio revelando que os avanços no caminho de um país mais justo não eram do jeito que todos queriam. Tinham outra coisa em mente. Queriam trazer de volta algo que pensávamos ter sido enterrado no passado, alguém mandando e os demais obedecendo. Aí colocaram em prática a estratégia de usurpação.

Renomearam a corrupção… de corrupção, uma prática já sistematizada e enraizada no cerne da estrutura político-econômica; escreveram promessas reacionárias disfarçadas num hino de liberdade; elegeram seus heróis e, sem demora, elegeram também seus vilões dando-lhes máscaras e significados caricatos; escolheram as armas de ataque e as apontaram para o vilão e tudo que ele tocou, vilão criado para ser um Judas expiatório. A partir daí todos passaram a apontar também os dedos em riste, esticando junto o polegar. A culpa de todos os problemas sociais, pessoais, psicológicos e mentais era do vilão exclusivamente, que foi empurrado para longe junto aos inconformados. No meio do povo ficou o cão, que não expulsou o vilão, não se armou, não se identificou, não disse o que faria, não escreveu sua história. Contudo, para atrair a atenção do povo, nem precisou falar, só latir e rosnar. Latido que passou a ser imitado e aprendido. Uma multidão cheia de certos e errados - amedrontada pelo progresso ainda fora do alcance dos olhos e pelas mudanças as quais deveriam se sujeitar - olhou para o cão raivoso e enxergou nele um líder.

O que os inconformistas ainda não viram, talvez por causa da distância, é que são maioria agora. O cão deu o aviso e, entre rosnados e latidos, e com muita dificuldade de articular as poucas palavras que é capaz, disse em alto e bom som que as minorias deveriam se juntar à maioria ou deixariam de existir. Se nem todo mundo entende a linguagem do latido ainda, talvez seja a hora de aprender.