À margem do Paraibuna
Termino, com extremo agrado, a leitura da obra ‘À margem do Paraibuna’, do jornalista fluminense Wilson Cid, que, desde muito jovem, adotou Juiz de Fora e daqui não saiu, apesar dos convites, como lembra Omar Peres, na apresentação do livro.
Juiz-foranos mais antigos, acostumamo-nos com a dicção perfeita do Wilson nas rádios e tevês por onde passou, e os achegados a jornais nos informamos por décadas com sua coluna política, em que a notícia e o primor linguístico convivem muito bem, marca que ele tem migrado para recentes artigos no Jornal do Brasil.
No livro, Wilson nos presenteia com textos mais longos e passeia com fluidez por vários aspectos da história juiz-forana. Quem quiser se informar sobre nossa exótica denominação (um juiz de fora, o que isso seria?), sobre os imigrantes que construíram a cidade, sobre alguns de nossos políticos, sobre nosso pessimismo, sobre nossos bares e restaurantes etc. encontrará, em ‘À margem’, informações úteis e às vezes muito pitorescas.
O livro reúne artigos e conferências que o autor proferiu ao longo da carreira, textos em que ele – sem descurar da informação – cede também ao pitoresco e à ironia, na linhagem dos grandes cronistas. Ao discutir, por exemplo, a preservação do patrimônio histórico em Juiz de Fora, o escritor saiu-se com esta: “A Igreja nunca pôde ser acusada aqui de simpatizar com a política de preservação”.
Dom Pedro II, que algumas vezes veio a Juiz de Fora, é lembrado, entre outras, nesta passagem, que flagra o imperador relevando uma desfeita de um de nossos republicanos: “João Nogueira Penido foi aquele que ao receber o diploma na Escola de Medicina no Rio de Janeiro fez breve reverência diante do Imperador, mas se recusou a beijar-lhe a mão. Teria o diploma cassado pelo diretor José Matos Jobim, se o próprio Dom Pedro não interviesse para revogar o castigo”.
Os nascidos aqui, como eu, é possível que viajando pela obra se sintam como verdadeiras testemunhas de situações relatadas. Ao falar dos italianos em Juiz de Fora, Cid lembra a figura de Ercole Caruso, que, na esquina da Halfeld com a Getúlio, era visto pelas manhãs na banca sendo reverenciado pelos conterrâneos: “Beijavam-lhe a mão direita, dirigindo-lhe poucas e medidas palavras em voz baixa. Nada mais que o necessário. De fato, muitos dos recém-chegados deviam àquele chefe o primeiro teto, a primeira mesa, o primeiro emprego de jornaleiro. Não era pouco. Tudo permitido, menos a ingratidão”. Fico feliz em ver o Caruso virando história, pois, juntadas as economias semanais de secundarista, foi com ele que adquiri minha primeira coleção de romances brasileiros e portugueses, já na época, vendidos em bancas.
Saboroso capítulo é o que trata do pessimismo em Juiz de Fora, a ponto de o prefeito Mello Reis ter confessado ao escritor que o mais difícil na administração seria combater a baixa autoestima das pessoas. Seria uma espécie de síndrome do juiz de fora? Quem nos nomeia nada fez pelo município, exceto nomeá-lo – e sua biografia não o coloca no rol das personagens veneráveis.
Ainda falando sobre o pessimismo, Cid, com sua verve bem-humorada, relata a propósito da chegada da família a Juiz de Fora: “... meu pai subiu a rua principal daquela Vila Ideal para receber, em um armazém, as chaves da pequena casa que havíamos alugado. O senhorio era dono desse armazém. Pois os dez minutos em que ali permaneceu foram suficientes para meu pai ouvir três coisas que nunca mais deixaria de ouvir nos outros 50 anos em que viveria aqui: esta Câmara é a pior de todas, o Tupi está em crise, o comércio não está vendendo merda nenhuma...”.
José Lemos Monteiro da Silva. Leopoldo Krieger. Frederico Carlos Hohne. Franz Hochleitner. Luiz Forte Bustamante Sá. Já ouviu o leitor alguém falar dessas personalidades? Pois todas elas são pessoas importantes e têm seu nome ligado diretamente a Juiz de Fora, mesmo que não tenham nascido aqui. Wilson Cid faz um relato da trajetória desses e de muitos outros, que, por via de seu livro, poderão, enfim, ganhar as páginas da wikipedia. O juiz de fora (lembram-se?) é Luiz Forte Bustamante Sá, que, no Rio de Janeiro, foi provedor da fazenda dos defuntos e ausentes, onde se mostrou “pouco cuidadoso com os cofres da instituição, deixando-os vazios”.
O entrelaçamento da história juiz-forana com a do Brasil, embora feito com leveza, não priva o leitor de valiosas e bem contextualizadas informações, que vão se distanciando das margens literais de nosso Paraibuna, chegando mesmo, em precioso capítulo, a indagações filosóficas sobre o inalcançável mistério da divindade, assim descrito por Santo Agostinho e citado pelo jornalista: “Não temos como dizer o que é Deus; se Ele for inteligível à razão do homem então não é mais Deus”.
Enfim, ‘À margem do Paraibuna’ é uma obra de textos independentes que vai – à força do estilo e das informações apresentadas – fisgando o leitor e tornando-o dependente de sua integralidade. Vale a pena conferir.