Cães do Fórum



Poder-se-ia afirmar, o dito pelo não, que dois cães são os guardiões do Fórum do Recife. Primeiro, porque falta a vigilância militar preventiva, que nunca deveria faltar. Depois, porque aqueles bichos cumprem todos os dias o expediente integral, cada um tomando conta de sua jurisdição, ou melhor de sua área. Um guarnece o flanco esquerdo o outro o direito, ala norte e ala sul, como restam conhecidas as duas bandas, desde a inauguração do novo prédio da justiça recifense.


A partir de quando aqui se estabeleceram os cães sem donos foram batizados pelo pessoal da Justiça. Um recebeu o nome de Rodolfo, o outro, Aureliano. Uma clara alusão ao próprio nome de batismo do edifício, designado em homenagem ao filantropo Rodolfo Aureliano da Silva.


Aquele homenageado atuou no Tribunal de Justiça de Pernambuco, onde foi presidente, como também presidiu o Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco. Atuou como desembargador entre 1951 e 1964 (ano de sua morte). Rodolfo Aureliano foi um dos primeiros desembargadores negros do Brasil. Foi também o primeiro titular do Juizado de Menores do Recife. Dedicou sua vida à luta contra os problemas sociais da região metropolitana, principalmente a pobreza e o destino dos menores abandonados. Paralelamente, como educador, buscava com seus ensinamentos a diminuição dos índices de delinquência e de marginalidade. Por isso, instalou núcleos profissionais e agrícolas, a Agência de Colocações em Empregos e a Escola de Serviço Social de Pernambuco.


Das minhas observações, o cão Rodolfo, de pelagem bege com algumas poucas partes escuras, rabo longo, como convém a um vira-latas, não faz mal nem a uma mosca. É filantropo como o desembargador Rodolfo o foi. Assenta-se próximo ao portão de entrada cumprimentando e acolhendo os visitantes, sem distinção. Para ele, todo ser humano pode ter algo de bom. Não influi a indumentária, raça, religião ou orientação sexual. Criou de forma espontânea o discernimento de escoltar as pessoas, quer soberbos juristas até humildes testemunhas, do pórtico até o átrio.


Já o cão Aureliano, quase da mesma estatura do outro, tem o pelo das costas preto e o peito, pernas e ponta do rabo brancos. Pela combinação da pelagem, dá até para dizer que ele é torcedor da patativa de Caruaru. Vejo-o pouco. Ele só vem para a ala sul no início das manhãs, como se desse lado estivesse o relógio do ponto. Para ele, não há bondade nos humanos. Aqui no sul, fica dialogando com Rodolfo, pelo menos até minutos antes da abertura dos portões, quando se despede e vai direito para o seu posto de trabalho no flanco norte, lá para as bandas do Capibaribe. Às vezes, volta durante o intervalo. Aproveita o sol tropical e vem se bronzear. Esparrama-se preguiçosamente no gramado e lá permanece por um bom tempo. Não creio que seja altruísta como Rodolfo. Parece menos solícito. Mais durão. Inflexível. Possui instinto, desculpem o trocadilho, duro de roer. Não dá bola para ninguém, nem mesmo para aquela cadelinha que vivia se engraçando para ele antes de ser adotada por uma servidora da justiça, que a levou para morar na Boa Viagem.


O resto da matilha que habita as ruas do Recife não se atreve a vir até aqui. Quando algum intrometido se arrisca neste desiderato, logo é enxotado, ele e suas pulgas, pelos cães do Fórum. O colóquio entre eles é íntimo como aquele travado entre Berganza e Cipião, os cães da narrativa de Cervantes. Falam entre si, com latidos, uivos, gestos e olhares. Discutem de orelhas em pé, primordialmente sobre os homens. Identificam-os, como sendo os seres sempre dispostos a iludir seus semelhantes. É, pode ser, às vezes a gente perde a nossa complacência. Rodolfo ainda arrisca amenidades, Aureliano só dá na goela da humanidade. O primeiro demonstra ser um cachorro mais sábio e equilibrado, inclusive usa expressões latinas, como é conveniente a um cachorro forense.


Aliás, aqui neste local, é onde praticamente deságuam todos os maus comportamentos humanos: falta de ética, maus tratos e injustiças, por exemplo. E os cães do fórum, por essa particularidade aqui verificada, diante do alto índice de distensibilidade das estruturas maldosas dos humanos, veem ao seu redor muitas mazelas; enganações; falcatruas; infidelidades e desamores.


Sempre que os encontro, sei bem que eles me entendem, tento reiteradamente dissuadi-los a pensar que a humanidade é má. - faz a gente rir não. Logo dizem. Os cães do fórum são seres sencientes. Senciência tem raiz etimológica proveniente do latim (sentire). Tem o significado de sentir, ou capacidade para sentir. Então, quando falo com eles, respeito a interessante sensibilidade animal, compreendendo que se trata de seres vivos, detentores de vidas dignas, conforme sua natureza. Noutras palavras, acho que eles querem ser tratados de igual forma como tratam os seres humanos: com todo o respeito, apesar de sermos humanos. Por essa razão, pelas sensibilidades e capacidade de demonstrar emoções, tento diminuir as angústias e sofrimentos dos cachorros diante do comportamento desumano. Mas, tenho dificuldade em convencê-los. Barra pesada. É cruel.


Colocam-me em sinuca quando questionam o homem, que tendo à sua disposição tudo que se encontra na natureza, ao invés disso aproveitar para naturalmente viver melhor, vorazmente destroem todas as maravilhas que vieram do Criador. Não conseguem assimilar porque humanos barbaramente devoram praias com cimento e argamassa; porque desmatam sádica e criminosamente as florestas e por qual motivo poluem de maneira atroz o céu, a terra, os rios, lagos e o mar. Eles não entendem a falta de afeto familiar; a infidelidade no âmbito doméstico; nem a separação de casais. Tampouco, compreendem a desonestidade nos negócios; a competição entre sócios e a enganação contratual.


Perguntam-me: - Por que, com toda a superioridade, os seres humanos, pensantes e inteligentes, maltratam, abusam, ferem e mutilam crianças, mulheres e idosos? - Por que guerreiam? - Qual a razão de faltar-lhes a necessária proteção à vida, à segurança e seu bem-estar? Ouvem-me com paciência, sem ansiedade. Não dou conta do propósito e eles chegam a nova dúvida: - Seriam os humanos realmente racionais e superiores aos animais? São apenas breves questionamentos, feitos por cães que descobriram o dom da palavra, mas sem nenhum comentário erudito, sem conceitos filosóficos ou didáticos. Apenas simples perguntas. Pioradas quando questionam sobre política. Uma pedreira.


Os cães se despedem de mim, despacham-me deixando rastros de amor e paz. Fico preso às minhas preocupações vendo-os desfilar despreocupados. Não é simples. Fica-me a lição: preciso dar mais atenção àquilo que faço, espelhar-me nos bichos e mudar o meu modo de tratar as pessoas e a natureza. Diante destas verdades morais, desço do salto, coloco o rabo entre as pernas, com a consciência me culpando, volto ao gabinete. Fico agora admirando pela janela os cães do fórum caminhando lá longe, como quem vai para Afogados. O meu coração se sacode dentro do peito, a alma descarrega suas tristezas. Estou a pensar como me sairei diante deles no dia de amanhã e como será o meu rastro no futuro. Ou melhor, o futuro me convida a pensar sobre qual será o meu legado. Mas, sou humano, eis meu ponto fraco, e amanhã nem sei se vou me lembrar disso.
MARCELO RUSSELL
Enviado por MARCELO RUSSELL em 06/09/2019
Reeditado em 06/09/2019
Código do texto: T6738651
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