SEIS MINUTOS NAS MEMÓRIAS DE CLARISSE [Le Cafe Marly]

Como é reconfortante o aconchego do lar. Há décadas explorando todas as emoções possíveis ao redor do mundo, desde felicidade, empatia, raiva, tristeza e [agora] solidão. Penso que, as emoções estão presentes para não nos esquecermos de que há coração, há vida corrente nas veias, que somos parte de um todo em movimento que também complementa um outro todo ainda maior, e assim, ad infinitum. Hoje faríamos bodas de níquel. O fato de estar aqui, em frente a esta lareira de fogo manso, com os pés tortos e compridos enfiados no tapete felpudo cor de creme, me remete à saudade de alguém que se foi. Lembro-me, naquela tarde fria, março de 64, quando admirava passivamente, com o corpo levemente inclinado sobre a mureta que dava como vista ao Le Cafe Marly, próximo a Pirâmide do Louvre. Quando te vi ali, blazer preto, cabelos cacheados e curtos sendo lavados pelo vento, tive a certeza que de mim a solidão também tinha sido lavada. Muitos não creem nessa coisa de 'amor à primeira vista', mas dou a face a tapa caso outra pessoa estivesse em meu lugar e não se apaixonasse naquele exato minuto. Veja bem, uma velha vivida como eu não se perderia em mentiras, não tenho nada a perder, posso morrer a qualquer momento, afinal.

Antonie. Este era o seu nome, o nome do homem que me traria toda felicidade que uma mulher do século XX poderia esperar. Nós nos aventuramos por toda a Europa, jovens inconsequentes, rebeldes e independentes. Um francês e uma brasileira de asas abertas ao mundo. Me recordo claramente deste dia, graças a esta foto aqui.

Antes de qualquer coisa... Você acredita em felicidade? Eu não, posso até ter citado ali em cima, mas não. Sabe o que penso? Prefiro acreditar no 'estar' em harmonia, e é assim que me encontro agora. Eu, meu álbum de fotografias sobre minhas pernas esturricadas, a sala aconchegante de luz alaranjada, a sensação de aquecimento, mesmo com as memórias imersas naquele inverno francês... Mas sabe, recordá-lo me equilibra. A saudade também aquece.

O fato de todos nós termos que partir um dia é triste e libertador. Há tanta saudade de você por aqui. Naquela mureta, quando me aproximei de você, lembro da sua surpresa como se estivesse acontecendo agora. Aparentava timidez, certamente não tremia só pelo frio. Se 'aquecia' conforme o diálogo; decidimos ir ao Café. O ambiente era convidativo, e eu achava engraçado a forma como você se sentava; inclusive quando compramos nossa primeira casa, naquele sofá roxo, de almofadas brancas estampadas com margaridas. Sentou-se, cruzou as pernas e arqueou os braços sobre o encosto do sofá, lentamente, dizendo: “irônico estarmos aqui [silêncio...], há milhões de possibilidades no mundo; já se questionou sobre? Quando você me 'escolheu', Clarisse, você se absteu às outras possibilidades, assim como eu... NÃO, NÃO, MINTO; nós renunciamos nossas possibilidades individuais e abraçamos as construídas por nós; AGORA PARA, OLHA ESSE SOFÁ! Quer melhor possibilidade que essa? [gargalhamos muito]”. Eu amava essa coisa dele tão particular de alinhar assuntos profundos e finalizar com um pontapé de humor pastelão.

Memórias e mais memórias passam feito um filme diante deste álbum fotográfico. Sabe, por mais que eu sinta sua falta, sei que ele estava sofrendo muito e a 'partida' foi a melhor opção. Ah, como é difícil tirar o ego de foco e entender a dor do próximo. E não, não demonstre compreensão, pois não compreende. Os anos nos trazem vigor, a tristeza, outrora líquida e escorregadiça torna-se pilar de concreto, estrutura para não se esborrachar durante o gira-mundo-cão.

São apenas seis minutos de memórias perante uma vida de quase oito décadas. Me sinto só, então, obrigada por me ouvir e ajudar a recordar dos meus melhores momentos. Não seja omisso ao tempo.

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Lâmpada de Porão
Enviado por Lâmpada de Porão em 05/09/2019
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