Como se comportar em uma fila?
“Respeitarás a tua fila de todo o coração, de toda a alma e de todo o entendimento” deveria ser um dos dez mandamentos da vida cotidiana de todo citadino e nascer, para se fazer cumprir, mediante decreto presidencial. Se há mandatários que usam decreto presidencial para fins menos nobres, como indultar criminosos, reduzir ''gastos'' com educação, saúde, por que não o utilizar para fazer do mundo, na pessoal de nossas amadas cidades, um lugar minimamente civilizado? Um decreto que ponha em ação um plano nacional de respeito e civilidade às filas presentes do Oiapoque ao Chuí; às de centro, centro/direita, destras; às das Marias, às dos Josés; às dos sóbrios e, sobretudo, às dos ébrios, que são essencialmente desorganizadas além da conta.
Um decreto que estabeleça ser matéria obrigatória nos currículos de nossos jovens e futuro fileiros a disciplina "Como se comportar em uma fila?". Se já dispomos em nossas salas de aula do ensino das figuras planas, das fórmulas químicas da física, dos fatos desenhados da história, das criações e destruições da guerra, "Como se comportar em uma fila?" é matéria de igual importância social para o mundo moderno e suas futuras gerações de sonâmbulos. Isto é, se essas gerações vierem, pois o mundo, tal qual se encontra, talvez não os caiba. É preciso abrir mais espaço nas filas do mundo para comportar os futuros fileiros, e, nesse sentido, um decreto vem a calhar.
Mais um decreto, então, para além do que decrete a obrigatoriedade do ensino de "Como se comportar em uma fila?", que se mostra urgentíssimo para o momento atual, cujo avanço do asfalto sobre o barro é uma realidade. As cidades e seus meios de locomoção, semáforos, condomínios, prédios, elevadores a cada dia avolumam-se e, em torno de si, as filas multiplicam-se desordenada e desumanamente. Isso tem enfeiado mais do que o tolerável nossas cidades, sem falar no trabalho que tem dado às autoridades manter a ordem presente em meio a tantos conflitos de corpos acotovelados nas filas urbanas.
Não raro, percebemos, próximo a ponto de ônibus, uma aglomeração de viventes em acotovelamentos e empurrões, cada qual dos participantes do evento tentando, a seu modo, entrar primeiro no ônibus e conseguir seu lugar ao sol, digo, à cadeira. É um pandemônio generalizado. A ordem de chegada dos usuários do serviço é, com frequência, desrespeita, e como os assentos geralmente são insuficientes para satisfazer a todos, acaba sobrando para os viventes velhos, corpulentos, gestantes e outros habitantes possuidores de limitações físicas, que ficam em desvantagem na hora de disputar um lugar na fila do transporte público concorrendo com o pessoal jovem, musculoso e saudável, na maioria das vezes, gente fabricada nas academias de pole dance, fisiculturismo e adjacências.
Isso é uma injustiça. Os últimos não podem ser os primeiros, a não ser casos rigorosamente previstos em lei e na tabuada. Um sujeito chega-se atrasado à fila do pão, toma nota do volume de gente à sua frente, olha o relógio e, a ignorar os demais postulante ao atendimento, aproxima-se do balção:
– Moça, tenho pressa. Me dê aí dois reais de pães.
Em meio ao doce aroma de pão, todos na padaria ficam embasbacados com o volume da ousadia do sujeito, não por conta da concordância frasal, dos "dois reais de pães", quando mais bem aceita pelos ouvidos dos fileiros seria "dois real de pão", mas sim por requerer prioridade no atendimento alegando ter pressa. Ora, não sabe ele que filas são compostas 99% de apressados? Pressa não é motivo para furar fila, embora seja a justificativa 99% mais alegada pelos que insistem no desonesto procedimento de furar filas. Do mesmo modo, nem pressa nem grau de endinheiramento podem ser tidos como motivos para furar fila. Ser rico ou pobre, feio ou bonito, gordo ou magro, conforme padrão amplamente divulgado pela mídia, não podem servir de argumento para modificar a ordem de uma fila.
Precisamos, para ontem, de um decreto que alinhe o modus operandi de nossas filas às boas maneiras do homem civilizado. A ausência de tal regulamento tem modificado o cotidiano de nossas cidades para pior. A paz social, a diminuição da violência, do número de xingamentos, das brigas fatais dependem disso. Do contrário, precisaremos aumentar o efetivo policial para conter a desordem nas filas; contratar mais médicos para cuidar dos feridos que comumente se acotovelam, xingam-se nas fileiras e, ao fim da disputa, esbaforidos, acham-se sempre com a razão. Afinal, o furão de fila é sempre um outro: um outro nada invisível.