Era fácil
Eu entendia a vida quando amanhecia. As coisas tomavam forma nos sons da casa verticalizando o dia. O chiado da água fervendo na chaleira, um arrastar de cadeira, o pigarro matinal, tudo natural, como sangue correndo nas veias.
As coisas eram simples de se entender, havia uma aceitação e elas simplesmente aconteciam. Era o sorriso fácil apagando os traços de um choro fácil, os cortes simplesmente sangravam na carne que, de tão viva, facilmente cicatrizava. Havia beijos, havia mãos, uma vela no escuro clareava a razão. Era simples brincar com as sombras nas paredes, eram apenas distrações nas horas sem luz. Distrair-se era fácil.
Nos armazéns eu recolhia com as mãos os grãos do feijão a varejo e deixava cair entre os dedos prá ouvir o barulho de chuva caindo no telhado, e os gatos dormiam sobre os balcões e isso era engraçado.
Era fácil encontrar graça nos tropeços pelas ruas de calçadas estreitas. Nas avenidas eu nunca me perdia, havia um mapa desenhado nas palmas que eram minha guia. Era simples entender as horas quando o cuco na gaiola do relógio batia as asas e ordenava o tempo, as coisas todas iam pro seu lugar e eu facilmente me encontrava.
E vinham as tardes com seus murmúrios de vozes calando o dia, vinha a noite sonolenta baixando nos olhos uma luz de roça e tudo adormecia.
Na minha cama junto à janela eu dormia na certeza de que a claridade viria me acordar com seus primeiros raios, e ela vinha todas as manhãs me abrir os olhos como se houvesse um pacto entre nós, um pacto de aceitação. Eu aceitava a vida e ela me aceitava na medida em que crescia a cada dia em volta do meu corpo na espera dos sons e das cores que surgiam do silêncio branco, tomavam forma e invadiam minha esfera.
Era fácil entender a vida, num acordo a cada dia, com o corpo despido de pressa.