Animal estranho
São 4h30 da manhã, e sábado ainda dorme. Na rua descalça, um solitário andarilho caminha, lenta e comoventemente, que mais parece flutuar sobre os paralelepípedos recém-lustrados pela municipalidade. Esse curioso tipo leva à cabeça um chapéu de palha, a tiracolo um objeto semelhante à espingarda, mas, olhando bem, vejo agora ser uma vara de pescar, e à mão uma chama acesa. Entre um passo e outro, uma tragada. Uns passos mais, perto do clarão da noite, embaixo de árvore cheia de sombra, ele estanca para dar sua ultima tragada, incendiando de vez os pulmões. A árvore parece não se queixar da fumaça advinda fora do horário comercial; pelo contrário, a julgar pelo balanço que envereda e pelas folhas que derrama sobre esta noite, talvez esteja assim quase alegre em saber que é só fumaça que o solitário andarilho lhe atira, e não golpes de machado ou rodas de um carro expresso. Ao fim das contas, penso que ela, esta árvore crescida sob o perigo do asfalto, concorda que, como facilmente se nota, o homem é animal demasiadamente estranho.
Que conheço, é o único animal que, sem mencionar os outros mil e uns mil milhões de pantins de que padece o ser bípede, destrói seu ninho; que exageradamente usa sua inteligência para o mal; que tem amizades por interesse; que aprecia furar filas; que beber água com gás e gosta; que acha bacana ser "bacana"; que busca a felicidade jogando na Mega-Sena; que cria sem ser criação; que é intruso e mal-humorado; que diz "Eu te amo" sem amar; que escreve aos sábados; que ouve e não escuta; que joga na Bolsa de Valores; que estraga a vista vendo as mil milhas de Indianápolis.
De todos os animais que conheço, é o homem o mais estranho; estranho e feio. Apesar da relatividade do conceito de beleza, fica-me a impressão de que o homem, comparado a outras espécies de animais, perde longamente em termo de harmomia corporal. Quem já viu baleias, araras, pavão e outros representantes da classe, há de concordar que são espécimes mais airosas e esbeltas que o bicho homem, animal de peso e dimensões muitas vezes desproporcionais, cujo principal predicado é destruir o que se põe em seu caminho.
Mas nem tudo é descrédito em relação a essa espécie de demolidores de mundos. Em princípio, nem todos são assim tão ameaçadores, vaidosos, pretensiosos, frívolos, ocos como se percebe na maturidade. Vejamos o caso do Homem-Criança. É esta uma classe muito distinta de homens estranhos, porque veem com clareza a escuridão do mundo; não precisam de motivos para rirem, pois trazem consigo o elixir do riso; dispensam elogios em público, que não necessitam se sentirem bacana para serem bacana; vivem uma vida muito próxima de si e de outros animais rastejantes.
Julgo, se felicidade existisse, detentores desse sonho dos mortais, pois o Homem-Criança é um animal carismático, sensível às cores e sons do mundo e, comumente, exímio apreciador das belezas que os animais estranhos insistem em exterminar. Um exemplo disso é meu sobrinho, um exemplar de Homem-Criança, que, embora carioca, crescido no asfalto e sob os aeroplanos, tem-me dado mostra de não ter sido contaminado por interesses dos homens estranhos e se conservado exemplar representante da categoria dos Homens-Criança.
Lembro-me de uma cena que, vivamente, ilustra o que acabei de dizer. Estávamos de bobeira, ele e eu, sobre uma calçada recém-inaugurada, quando uma lagartixa apareceu entre as rachaduras de um muro em construção, e ele me disse, falando seu carioquês fluente: "Oia, tchio, a iguana!". Até aquele momento não havia visto a tal "iguana", que, aliás, para mim sempre a tive como lagartixa. Mas meu sobrinho carioca, representante da classe dos Homens-Criança e, como tal, detentor em grande medida das sutilezas do mundo de barro, me alertou para meu desconhecimento acerca das iguanas. E, ao fazê-lo, me deixou menos estranho e mais consciente das estranhas características dos bípedes, vulgo animais estranhos.