COTIDIANO
“Mais uma tarde. Mais uma derrota do meu time. Mais do mesmo, como sempre”. Ele resolveu sair para caminhar, tirar peças mofadas do armário; tentar uma rota diferente da habitual. Nos headphones, o novo álbum do Limp Bizkit num volume não recomendado pelos pais mais afetuosos. A temperatura está agradável, 22°C, o prata dos carros reflete os outdoorsde LED em uma dança colorida e alternada, juntamente com o amarelar das 16. As pontadas no ombro esquerdo geralmente são passageiras, hoje resolveram fazer check-in e hospedagem; talvez ficarão nesta quarta até a noite de amanhã. A dor o faz lembrar do comentário feito há dois dias, em tom de deboche, com um amigo de longa data: “cara, a gente vai ficando velho e vão surgindo dores; nós só temos 25 [anos] rs”.
Os olhos procuram se adaptar ao novo trajeto, muros condenados com tonalidades que variam desde o azul turquesa ao salmão. “Baita quebra de rotina, em campeão?!”, sussurra. No tênue desgaste entre seus Adidas e a ruela de paralelepípedo, outro desgaste constante permanece na mente inquieta há alguns meses; desgaste de cabelos pretos ondulados, boca carnuda e longos dedos com unhas tingidas de royal. A dona destes mesmos dedos com unhas tingidas de royal digitou com certa cautela [e sem emojis], há seis meses, anunciando não estar mais satisfeita com os rumos da relação. O término era real. Os meses seguintes foram intragáveis, centenas de maços de cigarros para compensar o drama de mais uma história de amor que rolou ladeira abaixo. “Se não fosse pela ansiedade e os amores fracassados, o que seria das indústrias de tabaco?!”
A caminhada continua, a fuga física não sucumbe a mental, uma leve distração e... BOOM, o dia pode se transformar em uma grande avalanche de emoções nostálgicas e excruciantes. Logo adiante, em frente a um prédio amarelo e descascado pela fúria passiva do tempo, jaz um mendigo e seu cão; ambos sujos, o mendigo compartilhando sua marmitex com o cãozinho, como se estivessem diante da taça do campeonato brasileiro [que seu time perdera há poucas horas]. Por alguns segundos ele se sente ridiculamente envergonhado pelos 'problemas' que possui, como se o mendigo e seu melhor amigo pudessem enxergar cada lamúria [descompensada] sua por uma vitrine. Talvez um aceno acompanhado de um 'olá' tornaria a situação menos desagradável, talvez devesse demonstrar dó. O morador de rua sorri. O protagonista 'desaba'.
Com a cabisbaixa contrastando entre as árvores, resolve partir para casa. Na playlist, o álbum já chegou ao fim. Agora inicia 5 Years Old; na cabeça, martela uma frase que ouviu na época da universidade: “as ruas ensinam mais que as escolas; e não, viver não é fácil”. O Sol das 17 e tantas já marca presença na rua feito um caloroso anfitrião vestindo luz dourada. Reflexivo, segue olhando para tudo ao redor. Os fios da rede elétrica se confundiriam facilmente com fios do couro cabeludo de uma senhora européia aleatória, caso se tratasse de um recorte desprovido de qualquer contexto.
Ele se aproxima da calçada de casa, segue em direção ao portão. A digestão dos fatos deveria estar para ele, assim como o pó de grafite estaria para o cadeado ressecado a sua frente. Adentrou o quintal, fechou o portão e forçou o cadeado sem lubrificação até ouvir o [recompensador] 'click'. Procurou a chave correta dentre o molho de outras três, encaixou-a na fechadura da porta e entrou. Ela se fecha, o dia cede lugar à noite e a cidade vazia abre espaço ao movimento de pernas, rodas e rush. Mais um dia concluído à maioria, sem grandes expectativas, sequer acontecimentos cinematográficos, ou cenas dignas de último capítulo da novela das oito. Foi só mais um dia.
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