CRISTIANE... CRISTIELLE
Estava de costas para mim. Havia uma cicatriz no seu braço direito, envolvendo parte mínima das costas, próxima à axila. Era uma mácula sutil, mas de origem duvidosa. Desprovia-se da abundância de nádegas. Como se diz: uma tábua. Contudo, beleza não é fundamental e nádegas muito menos. Era o paradoxo de “Receita de Mulher”. Igualmente, abundava-se numa beleza rara. Era alta, ajudada também pelos tamancos que denunciavam um retorno à moda dos anos setenta que, talvez, desconhecesse na explícita lucidez de sua juventude.
Alguns transeuntes que passavam confirmavam para mim, o que eu já pressentira. Embasbacavam-se, muitos deles, quando a viam. A buzina e os olhares denunciavam a beldade. Ela, estática, encostada numa coluna de madeira que sustentava a cobertura da cigarreira, fazia-se alheia a tudo.
A sua demora coincidia com a minha. Todos os ônibus já haviam passado, exceto o do nosso ignoto destino. Ela foi até o dono da cigarreira para se informar. E ele lhe afirmara qualquer coisa relativa aos ônibus que a levariam ao seu destino. Na nossa espera, sem que soubéssemos, esperávamos a mesma lotação.
Por alguns minutos ficamos a sós na parada. Só poderia ser mesmo a coincidência dos destinos!
De tanto demorar o zero um, terminei por duvidar de mim mesmo, ou seja, da minha consciência. E o dono da cigarreira, mais uma vez, entre tantos que repetem a mesma dúvida, solucionou a minha que, também, fora a mesma dela. Ela estava a esperar o zero um como eu, mas o zero oito também nos serviriam.
Nossa coincidência era a rodoviária, mas seu destino Acari.
Adentrei a confabular que o zero oito havia passado há alguns minutos.
- Pois é, e já são 17:20h.
Chega o zero oito. Decidi-me também não mais por esperar o zero um.
Entramos no ônibus e fomos sentar nas últimas poltronas. Ela na da frente. Eu, na de trás.
O seu destino... o mesmo meu de parada, menos o de sina.
Voltou-se para mim e perguntou:
- O senhor tem horas?
- Não! ah...
Peguei o celular para ver as horas.
- Por favor, posso fazer uma ligação a cobrar? Por favor?!
- Pode, sim!
Ela era bela. Magra. Morena. E mais uma vez, eu estava a admirar sua beleza por trás. Confabulava com um homem que a esperava na rodoviária. Passei a me lembrar das pegadinhas de tv que divertem os que não têm o que fazer com as desgraças dos outros. Eu estava a me sentir verdadeiramente como um daqueles idiotas inocentes.
Ela não demorou mais que dois minutos. Mas o suficiente para que eu lesse no seu pensamento de magra, morena, alta e bela:
“Mas que velho idiota, que babaca!!”.
Só me bastava agora ela me pedir para carregar a sua mala.
Epilogava hesitante as minhas conjecturas.
- Muito obrigada!
- Não há de quê.
Os cabelos que estavam presos foram soltos. Demonstravam-se certo ar de liberdade, de paz, de tranquilidade. Eram longos, castanhos, lisos e belos. Voltou a prendê-los e, novamente, a soltá-los. Agora, retratando certo incômodo. Um frenesi de esforço. Voltou-se para mim bela e encantadora face, mas de um sorriso difícil de decifrá-lo, entre o cinismo e a “carência”, a dizer-me:
- O senhor, depois, pode me emprestar novamente, o seu celular?
- Sim!
Desta vez, o meu sim, era um sim carregado de cinismo, talvez o mesmo que notara em seu sorriso.
Mas, de repente, meu telefone tocou.
Não pude identificar o número que estava no visor. Era o do homem e a sua voz também, com o qual ela falara minutos antes. Queria a confirmação dela, se havia ligado daquele celular.
- Sim, foi deste mesmo. É pra você, Cristiane.
- Sim, já estou na avenida que leva à rodoviária. Chego já aí. Tchau!
Incitei a confabular:
- Você me fez lembrar aquelas cenas de pegadinhas da tv.
- Foi mesmo!
- Tudo isso, me parece digno de uma crônica. Eis o meu cartão. A propósito, o seu nome, por favor?
- Cristielle.
- Nome exótico, hein?!
- Obrigada pelo telefonema.
- Faça uma boa viagem.
- Trim trim.....
- Alô!
Era o mesmo 0849620...
- Desculpe o incômodo, amigo. Cristielle já...
- ...Ela acabou de entrar na rodoviária.
- Obrigado!
Do Livro CRÔNICAS DE UMA CRÔNICA VIDA - Natal/RN 2010