O SOLDADO DORMINHOCO

O SOLDADO DORMINHOCO

No exército, todos os locais são vigiados 24 horas por dia. O vigia, aquela pessoa que fica cuidando do local pessoalmente, não pode sentar e nem desviar sua atenção do local ou material que está sob sua vigilância. Fiz o curso de cabo e, aprovado em segundo lugar, passei a exercer as funções dessa graduação. Todos os dias é elaborada uma escala, onde cada militar deve ficar de plantão por vinte e quatro horas. Os soldados ocupam postos de vigilantes em pontos estratégicos do quartel e devem impedir ou comunicar alterações nos locais sob suas responsabilidades. Os plantonistas são chamados de vigias, cabo de dia, sargento de dia, oficial de dia, etc. Quando o serviço é prestado nas divisas do quartel, a reponsabilidade é maior e as funções são guardas e cabo da guarda. Os plantões das unidades e os guardas ficam duas horas no posto e descansam quatro. Na serviços de guarda, cabe ao cabo acordar os soldados que irão assumir os postos, coloca-los em forma e, marchando, percorrer todos os postos e acompanhar a troca de guarda. Em cada posto de guarda o soldado que é substituído informa ao que assume o posto as ocorrências que presenciou e as ordens a cumprir durante o plantão. Como cada soldado dorme quatro horas e trabalha duas, o cabo da guarda acorda de duas em duas horas e descansa menos. Acordar os soldados é uma tarefa chata, há a demora até todos se aprontarem, apanhar as armas e entrar em forma, o tempo de percurso até os postos, o retorno até o Corpo da Guarda. Na prática, o cabo da guarda não dorme, exceto umas cochiladas entre as trocas de guardas. Depois de prestar vários serviços como cabo da guarda, belo dia fui escalado para tirar serviço com o sargento Leovigildo. Leovigildo era terceiro sargento. Faixa preta de caratê, muito sério, era baixinho e muito forte. A academia Karate Kobudo Shinzato fica em Santos, na rua Senador Feijó, no centro de Santos. Para quem não sabe, Kobudo é a luta dos samurais, uma variação do caratê, mais violenta. Entre os praticantes, muitos destacados como melhores do Brasil, dois se sobressaiam por serem aguerridos, violentos, e nos jyu komites, não “refrescavam”, lutavam como se o treino fosse questão de vida ou morte. Jyu Komite é a luta propriamente dita, uma parte do treinamento dos caratecas. Um deles era o Wilson Caratê, meu companheiro de trabalho nas obras da Cosipa, hoje Usiminas Cubatão, onde era Fiscal de Obras. Era um cara alto e forte, usava óculos, o que lhe dava uma aparência amena, mas era famoso por sua fibra nas lutas. O outro era o Leovigildo, o sargento Leovigildo. Costuma-se dizer que os baixinhos são “invocados”, bravos. Leovigildo era o maior exemplo desse epiteto. Gente boa, mas muito bravo, não ria em momento algum, era um nordestino disciplinado pelo exército e muito exigente. Quando o Jyu Komite era Wilson e Leovigildo, a Academia do Shinzato parava. Todos lutadores assistiam a luta, e local se tornava pequeno, tal era a agilidade, saltos, golpes e ferocidade dos dois lutadores. O prédio da Senador Feijó tremia, literalmente, tal era a potência dos golpes, acompanhados de vigorosos “Kiais” (grito dado pelo carateca no momento de desferir um golpe que, contraindo o diafragma e soltando o ar pela boca, transforma-se em um som intimidador e potencializa o impacto). Ambos, incansáveis, lutavam um bom tempo, para alegria dos apreciadores dessa arte marcial. Voltemos ao quartel. Lá pelas três e meia da madrugada, comecei a acordar os soldados que iriam render os que estavam nos postos. Alguns soldados estavam prontos e um ainda dormindo, apesar da luz acesa e o barulho. Mexi no sujeito, para despertá-lo, A reação foi brutal. Xingou, berrou, mandou todos para locais indevidos, gritou dizendo que não ia acordar, que não tinha homem para despertá-lo. Adorei esse comportamento, mais ainda pelo fato de ser o sargento Leovigildo o responsável pelo serviço. Fui ao dormitório do sargento, acordei-o, pedi desculpas por importuná-lo. “-Sargento temos um soldado que não consigo acordá-lo. O senhor pode tentar fazer isso?”. Leovigildo, cara amassada e cheio de sono, levantou e veio até alojamento dos soldados. Mexeu no sujeito, e escutou os mesmos gritos e impropérios. Não teve dúvida. Arrancou a camarada da cama puxando-o por um dos pés. O cara ficou em pé, bravo e fez menção de partir para cima do sargento. Para sua sorte, olhou para quem o havia acordado e foi possível notar o medo em seu olhar quando reconheceu Leovigildo. Amarrou seus coturnos, pegou seu fuzil e entrou em forma. “-Estou pronto, seu cabo!”

Paulo Miorim 26/08/2019

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 26/08/2019
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