DAS MINHAS OBSERVAÇÕES NO COLETIVO
Cruzamos toda a Av. Mister Hull enquanto a moça arruma a sobrancelha, que já me parece arrumada, bem desenhada, até. Imagino que tenta apagar alguma falha. Invisível, talvez, porque não vejo razão para tanto tempo dedicado a passar cuidadosamente aquele objeto (que vou chamar de lápis, mas sei que deve ter outro nome), como se estivesse pintando os pelos. Sobrancelhas desarrumadas são as minhas, desalinhadas, aqui e ali um pelo fora do lugar, parecendo maior que os outros.
Mas isso não me preocupa, ainda mais porque os óculos ajudam a disfarçar qualquer imperfeição. O que me preocupa mesmo são as minhas outras falhas, além das físicas, considerando os “padrões”, aquelas que me fazem, muitas vezes, essa humana desajustada, às vezes tola, noutras um tanto crítica. É possível que para algumas delas não haja “lápis” capaz de moldá-las a ponto de alcançarem a perfeição. Mas eu tenho tentado, insistentemente.
Hora do rímel. Cílios superiores e, depois, cílios inferiores. Ela, obviamente, está sentada, e eu de pé, numa posição que me faz olhar em sua direção de forma espontânea. Em minhas análises penso na paciência dessa criatura. Eu sequer saberia lidar com a malinha que ela carrega, repleta de embalagens, algumas que nunca vi. E ela repete o procedimento de passar o pincel nos cílios, enquanto se olha em um pequeno espelho, alheia ao mundo e à pessoa que, sem razão que eu possa explicar, a observa.
A garota deve ter metade das minhas primaveras, penso. E isso me faz voltar no tempo e buscar em que momento eu vivi isso. Nessa breve, mas profunda volta, constato que na verdade não vivi. Devo ter me maquiado poucas vezes durante a minha existência. Se isso é problema, nem sei. O batom já resulta o bastante para essa minha cara de pouca vaidade (lembrei-me da Professora Lady, sempre a nos cobrar lábios pintados, vez ou outra me flagrando sem batom).
Por último, a passageira passa o batom. Aquele da embalagem verde, que eu havia visto no tempo em que eu era mais jovem. E pronto. Agora, imagino, ela deve se sentir melhor. E mais bonita. Penso até que possa ser exigência do trabalho dela, às vezes acontece, e que por isso precisa fazer tudo no caminho, no ônibus.
E eu sigo pensando em tantas coisas que preciso arrumar, que a sobrancelha vai ficando como sempre foi, com o desenho natural, retirados os excessos com uma pinça, de vez em quando. Faço as unhas e arrumo o cabelo e, apesar de não ser muito frequente, considero o bastante para meu “encaixe” no universo feminino.
E tem mais, nesse trajeto Caucaia-Fortaleza, se eu consigo assento, o que quero é dormir, pra completar o mínimo das horas que eu deveria ter de sono para descansar minha beleza. Ou, o que acontece no percurso de volta, mergulhar no infinito por meio das memórias que as janelas me trazem.