A Viagem
Logo que cheguei a Belém dirigi-me ao hotel para acertar a minha acomodação. Eu estava um pouco irritado devido às constantes viagens, e para aquela mais ainda, pois minha secretária não havia conseguido reservar o hotel com antecedência.
Ao conseguir o apartamento, me alojei e nada mais podendo ser feito devido à hora, fui dormir entediado. Acordei bem cedo. Não se espantem, pois quando estou viajando não consigo ficar na cama depois das seis horas – da manhã, é claro. Nessa ocasião eu era gerente nacional de vendas de uma grande empresa e tinha um salário de fazer inveja a maioria dos brasileiros. Entretanto a função exigia, para meu desespero, que eu viajasse quase que sem parar. Nem tanto pelos hotéis por onde eu passava que normalmente eram de quatro a cinco estrelas, ou os lugares, pois na sua maioria eram interessantes e alguns até muito bonitos, mas os deslocamentos aéreos é que acabavam comigo. Eram como doses homeopáticas para a morte. Enfim, um estreasse só: desde o momento em que eu entrava no avião, até sair dele. Outra coisa que me tirava do sério nessas viagens era o fato de que, tendo estado nesses locais meses atrás, nada ou quase nada havia sido feito da forma que eu determinara ao representante local. Complementando tudo isso, existia a maldita solidão que nos envolve após o término do trabalho.
Bem, eu estava determinado a fazer meu desejam calmamente, pois sendo tão cedo o que me sobrava era tempo. E esse tempo, por mais que eu tentasse, infelizmente era preenchido com pensamentos preocupantes do tipo: metas preestipuladas a cumprir; a secretária que não fez a correspondência corretamente; o supervisor de vendas com problemas financeiros e por isso não viajou naquele mês; o vendedor com problema de saúde na família; outro que tentou levar vantagem num relatório de despesa e deve ser punido por tal comportamento; o representante que, por ter várias empresas sob sua responsabilidade, não dá a devida atenção às determinações que a minha exige; objetivos pessoais a realizar que vão ficando para depois; o aborrecimento com a mulher que reclama de tantas viagens constantes e longas; e ao mesmo tempo a falta do convívio com a família e outras coisas mais, que eu poderia ficar aqui por uma eternidade enumerando-as.
Terminei o fausto café da manhã e saí do restaurante. Passava pela portaria do hotel e o atendente me chamou: era uma ligação. Atendi; mal tinha dado bom dia e veio a aporrinhação. Meu diretor, que não levantava a bunda da cadeira para nada, fora informado, por não sei quem, que o mercado estava completamente desarrumado e faltava mercadoria nas principais lojas da cidade. Não podia ter recebido um “bom dia” melhor do que aquele. A vontade naquele momento era de mandar tudo para o inferno com ele junto, mas tranquilizei-o dizendo que eu pessoalmente tomaria as providências imediatamente e desliguei o telefone.
Como meu representante só viria me apanhar por volta das nove horas e trinta minutos, resolvi dar uma volta pelo centro e verificar se as informações dadas ao meu diretor tinham fundamento. Saí do hotel e já me vi olhando atentamente a todos os varejos que poderiam comercializar meu produto. Precisava conferir se o mesmo estava presente ou se realmente faltava. Caminhei por quarenta minutos e o que eu via não batia com as informações passadas ao meu diretor – e isso me deixava mais fulo da vida. A vontade era de arrancá-lo de onde estava e esfregar seu nariz naquele panorama oposto ao que me informou, mas como ele estava há dois mil quilômetros dali, o jeito era relaxar. Tudo me incomodava naquele momento. O bom humor, que já não era muito, deu lugar à depressão. Parecia que eu iria sofrer um infarto, tal a irritação. Na verdade a vontade era de jogar tudo para o alto, voltar para casa e acabar com o sofrimento que sentia.
Continuei caminhando, agora com a calçada um pouco mais concorrida, pois as pessoas começavam a chegar em seus locais de trabalho; outras já trabalhando como eu. Enfim, a cidade estava pulsando. De repente, sem mais nem menos, as pessoas sumiram e na calçada abriu-se um clarão à minha frente. Não tive como evitar aquele cenário. A visão foi deprimente e estarrecedora. Deparei com aquele ser humano largado, por alguém, ali no chão; não tinha os braços e nem as pernas, seus membros foram amputados pela raiz. Seu olhar veio de encontro ao meu. Era melancólico e de súplica, que expressava não só seu pedido de ajuda, mas todo um sofrimento. Fiquei atônito. Nesses trinta segundos que me separavam dele, o filme da minha vida se fez presente em minha mente. Passei por ele não me dando conta de que não tinha deixado nenhuma ajuda, o que me obrigou a voltar e pagá-lo pelo seu ensinamento esclarecedor.
Essa rápida, mas inesquecível experiência me trouxe a realidade: reclamar das agruras da vida? Nunca mais.
Viagem realizada em 1986
Escrito em 16/10/1998
Concursos de Contos da Editora Litteris – 2006
Conto - A viagem. 4º lugar
Convidado a participar do novo lançamento de suas coletâneas com o conto: - A viagem.
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