Mangueiras

Engana-se quem pensa que conhece a cidade. Ela não se dá ao domínio nem ao entendimento. Verdade é que se está nela como no oceano: se o barco é grande e o mar calmo, faz-se paz e tem-se a ilusão de estabilidade. Mas se é revolto e o barco pequeno – ou as duas coisas, fatal destino dos miseráveis –, desespera-se, sofre-se como Judas, carregando culpa do mundo simplesmente por desejar míseros trinta reais.

Nas manhãs, meu primo e eu subíamos no pé de manga - "Manga baiana!", mãe dizia – como sempre acontecia nas férias. Mãos, queixo, nariz e orelhas lambuzadas. Os cotovelos respingando o caldo amarelo. Porque, ao contrário do que pensam os meninos da cidade, a manga não dá nas caixas do supermercado e nem no balcão da feira: ela dá no pé. E só se lhe sabe o gosto quem trepa nos galhos da mangueira, seguro por ela como a criança que mama na mãe, como o bezerro que se encaixa na anca da vaca para sorver-lhe a vida branca. Manga de supermercado é igual leite de caixinha: total artificialidade, tentativa de roubo à natureza. No mercado não se compra o leite nem a manga, mas apenas seus signos.

Levávamos sempre uma faca na mão, para entalhar na casca da mangueira o nome das meninas mais bonitas, e os víamos subindo com o tempo, igual o Fagundes Varella que, voltando à terra onde escrevera o nome da amada em uma das árvores, chorou por não conseguir mais lê-lo de tão alto.

Dentro de um coração, escrevia "Eu e Simoni", "Eu e Vanda"... sempre no mesmo ritual: os dois nomes ligados pelo conjuntivo "e". Eu dizia: "Flávio, pra lá fica São Paulo!"; e ele: "Pra lá é o Paraná, onde a Tia Isaura morou"; "Pra lá é o Rio"; e eu: "Pra lá é Belo Horizonte". E os braços apontavam para lugares além da Represa de Furnas, por trás da serra. Porque viver ali era isso: estar-se entre serras. Em nossa ruralidade infantil viajávamos na imaginação para as grandes cidades: "Como será?"

Quando cresci e me tornei mais pesado, antes que o galho se quebrasse, desci no pé de manga para me tornar responsável. Trabalhei, saí de casa. "Mundo, vasto mundo", Carlos me ensinou. Morei em Belo Horizonte, conheci o Rio, fui ao Paraná, vivi em São Paulo. Ali aprendi com o Belchior que a luz do sol não é tão bonita nem pra quem vem do norte nem pra quem vem de Minas. Achava que o mistério era da cidade. O mistério, assim como a saudade, nasceu foi na roça e de lá nunca saiu, nem forçado por Juscelino.

Grande já, ouvi “Função”, do menestrel Elomar. Foi uma epifania. Quando a arte, em qualquer que seja sua expressão, bate na gente igual ventania de chuva chegando, é um acontecimento inesquecível. Seus versos teriam sido compostos pra mim? Claro que não! Claro que sim: “Vem João, vamo meu bichin cantá o moirão/ tem um bicho roeno o meu coração/ cuando eu era minino a vida era manêra / não pensava na vida junto da foguêra / brincano cun's irmão a noite intêra / sem me dá qui êsse tempo bom / havéra de passá / e a saudade me chegá essa féra / quem pensá qui êsse bicho é da cidade / s'ingana a saudade nasceu cá no Sertão / na bêra da foguêra de São João”.

Elomar. João. Sertanias. A pois. Da cidade, busco refúgio nela, a saudade, herança lusitano-sebastianista que corre nas minhas veias. E me reporto ao passado. Garro a querer a serra e o pé de manga, mas já não são, nem nunca mais serão. Tenho apenas a crueza desse emaranhado de "cimento e lágrimas", como diria o Chico. Porque a urbanidade é isso: estar-se a se desnaturalizar cada vez mais, inexoravelmente. E, embora brigando para não me acostumar, fato é que compro, aos sábados, manga de supermercado e as encontro lá: nas caixinhas...

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 18/08/2019
Código do texto: T6723475
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