Publicações anteriores desta série: (pesquise pelo nome do autor):
  Crônicas de Brandão - Introdução
  Crônicas de Brandão - 1) O Mico da Lanchonete
  Crônicas de Brandão - 2) O Brado Retumbante
  Crônicas de Brandâo - 3) A Gincana da Torta de Maçã
  Crônicas de Brandão - 4) RRRaii RRRoberrrt!!!
  Crônicas de Brandão - 5) Putz...Melou!!
  Crônicas de Brandão - 6) Perseguindo a Polícia
  Crônicas de Brandão - 7) Acabou em Pizza! 
  Crônicas de Brandão - 8) Louça Suja se Lava em Casa!
  Crônicas de Brandão - 9) A Velhinha de Taubaté
  Crônicas de Brandão - 10) Matusa... para os Íntimos!!
  Crônicas de Brandão - 11) Rainbow...
  Crônicas de Brandão - 12) "Pois eu d'rei q'não!"
  Crônicas de Brandão - 13) Um dia de Fúria!
  Crônicas de Brandão - 14) Um Vilão Impostor
  Crônicas de Brandão - 15) In-Segurança de Condomínio

 

Crônicas de Brandão
 
16 – O Estrangeiro
 
Durante um tempo, entre 2010 e 2012, minha esposa manteve um atelier de cerâmica em Maria da Fé, cidade turística do Sul de Minas, a 1400m de altitude na Serra da Mantiqueira, tida como a mais fria do Estado. Já com minhas atividades profissionais em ritmo de terceira idade, acompanhava-a quase todos os dias em algumas tarefas comerciais e artísticas e em todos os assuntos administrativos.
 
O atelier se estabelecia na antiga estação de ferro da cidade, ocupando todo o salão central, onde as peças eram expostas, e de onde uma escada levava ao mezanino-balcão, local em que a produção e administração eram realizadas.

Pedro, um rapaz de fácil relacionamento e muito tino comercial, atendia os clientes no salão central e, sempre que necessário, valia-se do nosso apoio sobre questões técnicas e negociais, para isso galgando os degraus que conduziam ao mezanino, onde minha esposa e eu geralmente trabalhávamos.

Famosa pelo clima e por seu artesanato, Maria da Fé é muito frequentada por turistas de todo o Brasil e mais raramente por turistas estrangeiros, os quais eu atendia pessoalmente, principalmente por conta de minha familiaridade com o idioma inglês em que normalmente se comunicavam.

Aquele sábado estava particularmente calmo. Era sofrido gastar um fim de semana à espera de clientes que não apareciam. Mas, afinal, algo de bom aconteceu. Brandão me ligou de Brasília. Estava muito estressado com seus afazeres, muito saudoso, e tentando encontrar um tempo para vir me visitar. Como sempre, conversamos longamente sobre acontecimentos recentes na vida de cada um e sobre como se desdobrava nossa rotina diária. Brandão surpreendeu-se ao saber que eu passava meus dias no atelier, de onde estava falando, naquele mesmo momento. Embora soubesse da atividade artística de minha esposa, e da minha participação no empreendimento, achava pouco provável que após uma vida de executivo em várias empresas eu, agora, me dedicasse a lixar e queimar peças de cerâmica. Senti muita vontade de vê-lo e lamentava que a distância sempre fora um obstáculo a uma convivência mais frequente entre nós.

Terminada a ligação, estava eu ainda refletindo sobre as vicissitudes de nossa amizade quando, finalmente, entra um cliente! Um senhor já idoso, curvado pelo peso dos anos, usando um boné, que deixava transparecer mechas de cabelos brancos, e óculos escuros, que mal lhe deixavam mostrar a expressão. Com a curiosidade de quem entende da arte, pesquisou durante vários minutos as prateleiras e os cubos brancos de madeira em que as peças estavam expostas.

Após permitir que o velho desfrutasse de ampla liberdade, para que sua pesquisa não fosse interrompida, Pedro finalmente se aproximou e perguntou se podia ajudá-lo.

Num sotaque inglês acentuado, o velho arriscou com dificuldade:

- Voucé falar ínglesh”?

Pedro, apavorado, fez que não com a cabeça e, com as mãos espalmadas para baixo, pediu que esperasse, já se afastando em direção às escadas. Em segundos alcançou o mezanino esbaforido.

- É estrangeiro, acho que só fala inglês.

Antevendo a possibilidade de uma boa venda, atribuí a sorte aos influxos positivos da ligação de Brandão. Preparei-me para atender o velho, de catálogo na mão, já buscando o vocabulário apropriado, em seu idioma, para lhe explicar o processo de fabricação das peças, os materiais utilizados e a flexibilidade que tínhamos para despachar os produtos para qualquer parte do globo.

Apesar da idade, e da coluna já curvada, tinha um porte avantajado e um semblante que, embora parcialmente encoberto pelo boné e pelos óculos, denunciava uma vasta experiência de vida e muita convicção acerca de seus propósitos.

- Senhor, gostaria de ver nosso catálogo? –, perguntei, em inglês, tentando decifrar sua avaliação do que ele já havia visto até aquele momento. 

- Não, meu amigo, gostaria de ver é você mesmo - disse Brandão, em bom português, endireitando a coluna, tirando o boné e os óculos.

Era um ator nato! Uma armadilha perfeita. Jamais eu poderia imaginar que Brandão viesse de Brasília, sem aviso e sem a certeza de que me acharia no atelier. Mas ele sabia que me encontraria ali e naquele momento. Fizera o telefonema minutos antes, das redondezas, afim de certificar-se de que eu estaria ali, para ser vítima de sua performance magnífica.