Casas de esquina

Há quem prefira morar em condomínio, apartamento e similares. Se por questão de segurança e comodidade, não garanto; certeza que porque têm os cobres necessários. Do contrário, sem a posse do vil metal, seriam dispostos, como acontece com grande contigente de brasileiros, sem direito à opção, a esses seria ''oferecido'' a rua, essa entidade metafísica. Mas como geralmente podem escolher, evitam as casas comuns nas ruas comuns, principalmente as casas de esquina. Assim, fogem do por vezes perigo e do, quase sempre, fascínio que representa morar em casa de esquina. Embora as chances de carro acelerado, ladrão atento, prestomista insistente chegarem primeiro a essas moradas sejam frequentes, sobrepõe-se a esses infortúnios o privilégio de receberem as notícias do mundo em primeira mão.

Faltou luz na cidade? Padeiro queimou o pão? Prefeito atrasou o salário dos servidores? Carteiro gaziou entrega? Pois bem, essas informações podem ser consultadas às casas de esquina sem necessidade de número de protocolo nem espera demorada. Basta chegar-se a um morador de uma dessas instituições públicas e atualizar-se, que morador de casa de esquina, sem ser sua intenção, aperfeiçou-se no hábito de inclinar-se aos assuntos domésticos, à fofoca, à filosofia de rua. Apreendeu, à esquina de casa, assim sem querer, a observar a vida alheia passar pela cidade inteira, despercebida e amarga, menos nas esquinas dessas moradas, nas quais geralmente se instalam muito comodamente bodegas, bares, e mais modernamente igrejas.

Esse agente público instruiu-se a ver, da esquina de sua morada, a vida cristaliza-se na forma de sons e imagens. Os sons de chuva, de vento, de carro ou pedestre lhe chegam primeiro; sabe-se, pela manhã, conhecedor dos segredos da república e, à tarde, nada a declarar. Vive em sua casa de esquina, vestida de branco, cimento reforçado, honestamente refugiado da pressa da vida, que, para isso, aliás, casas de esquinas são eficientíssimas. São, ainda, ótimos abrigos para quem corre da chuva, mas não da polícia; para quem busca encurtar silêncios; para os insones; para os desabrigados de afeto, os quais encontram nas paredes de casas de esquina excelente ponto de referência para o amor.

Ah! se muro de casa de esquina falasse... Que diria ao sujeito inominado que declarou na parede de um bar de esquina com o poente da Ferrovia TransNordestina: "Jéssica-eu-te-amo!" Que nome próprio teria? "Amanhã Depois Quem Sabe"? Falaria Javanês ou esperanto? Amaria Diana? Iria à missa aos domingos? Pintar-se-ia de luto ou de doces? Seria inverno ou verão? Muro ou parede? Letras ou números? Se verbo, préterito perfeito, mas-que-perfeito ou futuro do subjuntivo?

Ah! se as casas de esquina falassem: que seriam de seus muros, que suportam o mundo? O mundo dos cachorros abandonados; das testemunhas de Jeová; dos ébrios sem pátria; dos soldados desarmados; dos amores perdidos; dos mendigos famintos; das moças de olhos de amêndoas verdes, como diz García Márquez; das balas perdidas que encontram no muro das casas de esquina parada segura. Sem o perigo e o charme das casas de esquina, que seriam desses e de tantos outros mundos ocultos na pressa, vozes e fumaças de nossas amadas cidades?

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 17/08/2019
Reeditado em 30/08/2019
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