ALICE DEPRESSIVA

Pressa, pressa.

Eu tenho muita pressa, dizia o coelho para Alice. Estou atrasado!

Mas você me diz que ainda não sentiu o tempo ruir debaixo dos seus pés abrindo um buraco do tamanho de uma galeria de metrô. Não? Devo dizer que fico feliz em te conhecer, por ter chegado há tempo de ver-me em ti e assistir ao remake do filme.

Ninguém me obrigou a ser claro, mas devo explicar essa provocação para não correr o risco de dizerem que não sei escrever uma crônica nos moldes em que se ‘deve’ escrever uma crônica.

É que eu já estive inteiro, como você agora.

Já me senti Apolo capaz de atingir o sol; se menos, chegar até perto. Houve mesmo um tempo, antes do tempo ruir e me rasgar por dentro, em que tudo era sonho. Eu dormia. E você sabe, dormir é melhor que saber que se sonha — não sabe?!

De qualquer modo, acordar dentro da vida é como perder uma camada de pele, sei lá, é tão difícil comparar algo que não tem nome. Mas você acorda um dia e percebe que nada amanheceu, se lembra dos últimos pensamentos, um zunido no ouvido, sentidos alerta, e então, lá dentro de você onde o dia nunca amanheceu uma luz tenta dizer o que estava tentando viver.

Tenho certeza que é com muito esforço, com ajuda e toda sorte, seu entendimento da realidade assegura que a iluminação desse instante vai durar mais tempo. Depois de uma eternidade a gente sai de dentro de si. Como se pudesse saldar a máquina resplandecente que revela o engenhoso ardil, uma voz responde: BOM DIA, ALICE!

Mas agora, se há pressa se apresse.

O que responder ao coelho branco que não pensa e está na fábula só para nos alertar, nos confundir esclarecendo? Ah! Maldito coelho socrático.

Vá lá fora, espreita a vida nos seus termos. Os passos, as rodas e os motores nas ruas que se interligam, atravessam, conectam sem fim todas as artérias artificiais aos cortes cicatrizados sob sua pele.

Vá lá.

Vai em frente sem fones de ouvido, sem wi-fi, sem combinar retorno, almoço ou jantar.

Entre em si e olhe a volta, o mesmo sol de ontem está no céu; esse é o mesmo céu de anteontem. A luz que do céu deságua banha o verde na terra e as meninas que bailam no escuro de suas retinas iluminadas nesse instante.

*

*

Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 15/08/2019
Código do texto: T6721097
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.